domingo, 6 de janeiro de 2008

 

O nosso samba

Entenda como a música considerada “nossa” aos poucos foi sendo construída para se tornar legítima representante de brasilidade

Por Erika Lettry

No ano passado o samba foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, sob registro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Sambistas famosos como Nelson Sargento comemoraram o reconhecimento declarando que “o samba é agora cidadão brasileiro com todas as letras”.

O reconhecimento, para muitos, foi tardio. Afinal de contas, há anos o gênero musical é referência dentro e fora do Brasil, tido como símbolo maior de nossa brasilidade. Não à toa compõe a famosa tríade que muitos estrangeiros que pisam por aqui repetem sem o menor pudor: o Brasil é lugar de “samba, futebol e mulher”.

Mas afinal, de que forma o samba conseguiu alcançar o status de gênero nacional por excelência? O antropólogo Hermano Vianna arriscou algumas respostas no livro O Mistério do Samba. Retrocedendo em alguns pontos da história do país, ele mostra que samba tornou-se componente da identidade do brasileiro. Menos pela índole das pessoas que por uma série de construções que abarcam, de certa forma, uma verdadeira força-tarefa na tentativa de unificar o Brasil usando a música como referencial.

Samba pela história - Datar precisamente o momento da penetração da cultura popular nas rodas da elite brasileira não é fácil. Muitas suposições e pouca análise criaram mitos arraigados como, por exemplo, o de que o samba deixou de ser subitamente um ritmo marginal do começo do século passado (tocado apenas nas favelas, pelos “malandros”) e passou a ser aceito pela classe dominante, até chegar ao momento “mágico” em que foi nomeado símbolo do Brasil.

Em seu livro, Hermano Vianna mostra que esta passagem não foi súbita e nem mesmo tão desinteressada como muitos acreditam. O antropólogo enumera vários nomes (como Catulo da Paixão Cearense e Laurindo Rabello) que, com suas modinhas, lundus e toadas sertanejas, fizeram sucesso entre a elite brasileira e deram espaço para que o ritmo nacional ascendesse.

Esta pequena ascensão era, contudo, apenas um esboço do que viria. A valorização das “coisas do Brasil” só ganhou contornos mais nítidos quando se acelerou a discussão sobre a descentralização do país. O problema da unidade da pátria ganhou notoriedade entre os intelectuais como, por exemplo, Afonso Arinos, tendo mais tarde seu apogeu com Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala.

O projeto de unificação nacional, embora já tivesse sido esboçado em algumas situações, não chegou a ser algo claramente definido. Somente com a chegada da República é que se sentiu verdadeiramente a necessidade de construir um símbolo nacional que substituísse o da coroa.

O que ocorreu, entretanto, foi a criação de oligarquias que valorizaram ainda mais a regionalização do país, dificultando o projeto de centralização. Foi neste período que prevaleceu a famosa política café-com-leite, quando as oligarquias aproveitavam deste traço descentralizador para dominar o país.

Construção - Essas tendências regionalistas só foram “sufocadas” em 1930, quando o gaúcho Getúlio Vargas chegou à presidência da República. E é justamente nesse período que o samba consolida-se verdadeiramente como ritmo nacional, em uma construção que uniu a política, a intelectualidade brasileira e as camadas populares.

Tais tendências de valorização do nacional não tinham a ver com uma volta às raízes do Brasil, mas sim com a criação dessas raízes. O modelo de autenticidade do Brasil não foi fruto de uma escolha de algum modelo regional de brasilidade, mas foi fabricado após a ascensão de Getúlio Vargas unindo os diversos elementos do país.

Hermano Vianna considera o final dos anos 1920 como o período de nacionalização do samba, tendo como mediadores músicos, representantes do governo e intelectuais como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Gilberto Freyre. Segundo o estudioso, eles teriam papel fundamental na execução de um processo de criação da identidade brasileira, tendo o samba como principal elemento. Aquele que seria considerada como a “nossa música”.

Erika Lettry é jornalista, especialista em Jornalismo Cultural e autora da monografia O Brasil de Ruy Castro: O Jornalismo e a Construção de Uma Identidade Cultural Brasileira

Foto: Mantelli
(captada no site Flickr)

Um comentário:

Rainer Sousa disse...

A obra do Vianna, sem dúvida, lança dados muito preciosos sobre a trajetória do samba no país.

No entano, acho que a abordagem dele ainda fica presa a uma noção romantizada de uma classe subalterna passiva aos usos e abusos de sua arte.

As estratégias e ações interessadas dos próprios sambistas ficam colocadas em local invisível. Reproduz uma noção que equivale o popular ao ingênuo e passivo.

;DDDD