terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

 

Destino de um Rei sem súditos

Zaguinha, o “rei da embaixadas”, volta às ruas de São Paulo depois de ser atração de TV e contratado de empresa de material esportivo

Por Thiago Arantes

Uma nota de R$ 2 repousa dentro do chapéu preto e branco, encardido, sobre as pedras portuguesas da Rua 15 de Novembro, Centro de São Paulo. O artista pede mais. "Só vou começar o show quando tiver três reais." Percorre a platéia com os olhos, mira 20 alvos, possíveis contribuintes. O tempo passa, o público se dispersa. O show começa, tardiamente, para duas pessoas – um senhor de bigodes brancos, antigo dono da nota de R$ 2, e este repórter.

O artista é Manoel da Silva, 55 anos. Manoel, estatura mediana, olhos pequenos e cavanhaque pela metade – que forma a letra "C" – é Zaguinha, o "rei das embaixadas". Alagoano de Murici, ajudante de pedreiro, que descobriu o talento para equilibrar bolas e objetos aos 32 anos. "Estava jogando sinuca e uma bola caiu da mesa. Comecei a brincar e vi que levava jeito." Não parou mais.

Em 1994, decidiu tentar a sorte em São Paulo. "Era ano de Copa do Mundo, a chance de crescer e aparecer". Primeiro, Zaguinha apareceu. Foi no intervalo da partida entre Brasil e Camarões, ao lado do telão da TV Globo, no Centro da cidade, fazendo embaixadas com um coco. Virou "Zé do Coco".

Faltava crescer. E Zaguinha cresceu cinco anos depois, em 1999, quando foi estrela de um quadro no Esporte Espetacular, também da Globo. "Falei que eu era o melhor do mundo e propus um desafio. Ninguém me venceu." Foram 14 semanas, uma dúzia de rivais derrotados. Zaguinha não ganhou dinheiro. Mas, colocado de lado depois de esgotar os desafiantes, conquistou um patrocinador. Por sete anos e dois meses, o "embaixador" – como define sua profissão – foi contratado da Dal Ponte, empresa de material esportivo (na foto, em viagem aos Estados Unidos, em campanha).

O acordo acabou em março do ano passado. Não foi renovado. "Eles mudaram a política da empresa, e eu dancei. Mas foi uma época boa, reformei minha casa, consegui melhorar minha situação."

De volta ao Centro - Foi à procura de um novo patrocinador que Zaguinha voltou às ruas do Centro no início de setembro. "Aqui é um lugar que conheço bem, trabalhei por três anos, entre 1996 e a Globo."

Os tempos em que era atração de TV estão registrados no pequeno espaço que o "rei das embaixadas" ocupa no calçadão. No chão, ao lado do chapéu encardido e de um campinho de futebol em que estão dispostas bolas de seis tamanhos, Zaguinha espalha folhas de papel sulfite com fotos impressas em baixa qualidade.

Nelas, o embaixador está ao lado de técnicos, celebridades instantâneas e ex-jogadores. As imagens estão distorcidas. Não bastasse a impressão ruim, a primeira chuva da primavera paulistana borrou as recordações. A tinta escorreu pelos papéis.

Caso se canse de olhar os borrões de seu passado, Zaguinha pode transformar as impressões, também, em instrumento de trabalho. Dá para fazer embaixada com bola de papel? "Claro que dá. Eu faço embaixada com qualquer coisa. São mais de 100 itens na minha lista, é só pedir". Às 13 horas de uma ensolarada quinta-feira, 27 de setembro de 2007, não havia ninguém além do senhor de bigodes brancos, o antigo dono da nota de R$ 2, para fazer o pedido.

"Faz com a bolinha menor, então." Zaguinha olha para seu campinho e pega uma esfera de metal, 2 mm de diâmetro. Toca uma, duas, dez vezes nela com os pés, sem deixar cair. O homem faz sinal de positivo. "Muito bom, muito bom". Vai embora.

Zaguinha agradece. Seu companheiro de show, o também embaixador Fábio Peixoto, 24 anos, está com a expressão fechada. "Se você tivesse feito logo o show, o povo não teria ido embora." Os dois trabalham juntos desde que Zaguinha decidiu voltar para as ruas. "O Fábio está aqui há mais de um ano. Eu cheguei agora, de volta. Viramos sócios."

“Até com abacaxi” - Embora trabalhem juntos, os dois têm estilos diferentes. "Eu acho que é preciso evoluir. Se o Ronaldinho inventa uma embaixada, eu vou fazer, também. É preciso estar sempre ligado nas novidades", diz Fábio. Zaguinha discorda. "Tudo o que eu faço é original. Eu inventei a embaixada com bola de prego, fui o primeiro a fazer com bolinha pequena, fiz com frutas, com bolas de outros esportes. Até com abacaxi eu fiz. Por isso que eu sou o rei, eu sou diferente."

Mas a "diferença" de Zaguinha chegou ao limite. "Não tem como fazer embaixada com uma bola menor do que esta", diz, apontando para a esfera que acabou de equilibrar. E então, o que fazer? Quais as novidades? "Não tem o que fazer, não tem novidade. Não posso fazer embaixada com uma bola que não consigo ver." Com a bola de futebol, faz 170 embaixadas por minuto, e já chegou à marca de 8 mil em oito horas de show. "E nunca errei ao vivo. Não fico nervoso porque faço o que sei fazer."

Mas se nem o "rei das embaixadas" vê novidades pela frente, é porque o futuro da arte pode estar em perigo. E está. "Todo mundo é desunido, esse é o problema. Tem muito príncipe e bobo da corte por aí dizendo que é rei", diz Zaguinha. Fábio, o sócio, discorda novamente. "Zaguinha fala demais. Ele foi rei faz tempo, tem que ver quem é o rei agora."

Os dois começam a discutir. Tentam levar a conversa em um clima de provocação sadia. Não conseguem. Fábio chama o sócio de "metido", diz que Zaguinha "vive de um passado distante". A resposta vem em tom professoral. "Você é jovem, tem muito que aprender, ainda. Eu sou o rei e tenho as provas em vídeo. Coloca na internet 'rei das embaixadas' e vê o que aparece." Aparece o site de Zaguinha. Sem atualizações desde 2000.

O diálogo ríspido chama a atenção dos pedestres. "Não vai ter mais show?", pergunta um jovem de pele escura, bigode proeminente e casaco amarelo – fez frio em São Paulo durante toda a semana. Fábio sorri sem graça, Zaguinha também. Os dois concordam, enfim. "Pensamos de forma diferente, não adianta", diz o "rei". "Não adianta, mesmo", reforça o sócio.

Recomeço - A parceria chega ao fim. Ambos parecem aliviados. Até sorriem. "Não estava dando certo mesmo", diz Fábio. "E não pense que a culpa foi sua!", brinca Zaguinha com o repórter. Fábio diz que continuará onde está. Na 15 de Novembro, sob a sombra de uma árvore esguia, último artista de uma fila que tem, às 15 horas de quinta-feira, cinco pintores e três hippies artesãos.

Zaguinha ainda não sabe qual será seu próximo palco. "É fácil arranjar um ponto novo, mas ainda não pensei nisso. Só sei que vou fazer embaixadas até o fim da minha vida, o lugar não importa.", diz, acelerando o passo. "Preciso ir, tenho aula à noite." Zaguinha cursa a 5ª série do Ensino Fundamental. Voltou a estudar neste ano depois de quatro décadas parado. "Antes eu achava que as embaixadas tinham me dado tudo o que eu precisava na vida. Mas a escola pode me dar muito mais." E vai embora, entre hippies, mendigos e profetas. Sem saber por onde recomeçar.

Thiago Arantes é jornalista

Foto: Acervo pessoal