domingo, 3 de agosto de 2008

 

Época da inocência

Por Erika Lettry

O escritor inglês Ian McEwan tornou-se conhecido do grande público pelo livro Reparação, adaptado recentemente para o cinema pelo diretor Joe Wright. Ganhador de vários prêmios e já considerado um dos nomes mais importantes da literatura atual, é daqueles autores que sabem mergulhar com profundidade na alma de seus personagens. Como ocorre no romance Na praia, publicado no ano passado.

A obra conta a história da fracassada lua-de-mel dos jovens Edward e Florence no início da década de 60. Ian McEwan descreve como a criação conservadora e moralista que receberam irá influenciar o destino do casal. Logo no primeiro parágrafo ele dá o tom do livro: “Eram jovens, educados e ambos virgens nessa noite, sua noite de núpcias, e viviam num tempo em que conversar sobre as dificuldades sexuais era completamente impossível”.

Edward, após várias tentativas de ter mais intimidade com a amada durante o namoro, espera finalmente a consumação do ato. Na contramão Florence, embora sinceramente apaixonada, teme a primeira noite e sente uma certa repulsa pelo marido. Ian McEwan narra até os pequenos fiapos de pensamento dos dois, revelando suas contradições, medos, desejos e inibições. Tudo com sensibilidade e sofisticação.

A dificuldade de Edward e Florence em falar abertamente sobre suas angústias em relação ao sexo marcam o último capítulo de uma época de “inocência”, que seria precedida pela revolução sexual de 1968 - para surpresa de Edward. A beleza do trecho final, distante dos finais felizes, arremata a ótima obra do autor inglês.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

 

Jovino e a onça

A incrível história do calunga guia na Chapada dos Veadeiros sobre a felina que come gente

Por Rodrigo Alves

Seu Jovino não é do tipo que se incomoda com longas distâncias. Especialmente se forem percorridas a pé. Ele nasceu Josino Faria da Silva, mas para não confundí-lo com a irmã Josina, os amigos alteraram o nome.

Jovino veio ao mundo há 62 anos em uma pequena comunidade calunga (descendentes de africanos em locais isolados de Goiás) .

Chamado Vão de Almas, o local é distante a cerca de 80 Km da pequena Calvalcante (GO), que por sua vez fica a 520 km de Goiânia, nordeste goiano.

Para se chegar lá é preciso andar léguas, como ainda dizem os calungas. Primeiro de carro (com tração 4x4), depois em lombo de burros. Por fim, à pé. Leva-se um dia inteiro.

Graças aos tempos, Jovino vive atualmente em Cavalcante. O conheci graças à profissão que exerce hoje, guia naquela porção da Chapada dos Veadeiros. “Eita, já levei vida muito difícil. A gente andava descalço no meio dessas matas. Criava casca no pé”, lembra ele, ex-lavrador.

Hoje, quando entra na mata é para guiar turistas. A maioria só conhece a porção da chapada situada no município de Alto Paraíso e recentemente tem descoberto também a região.

Há pouco mais de cinco anos, Jovino se empenhou em ser guia nas trilhas turísticas. Fez curso de primeiros socorros em Goiânia e passou a conhecer mais sobre a história da região. É considerado o melhor guia de Cavalcante. Se algum dia você tiver oportunidade de encontrá-lo, peça-lhe para contar histórias da onça.

Come sim – “O pessoal do Ibama diz que onça não come gente. Que não come que nada. Deixa ela ficar com fome pra ver”, desafia, em seu tom brincalhão e risonho. Caminhando à frente do grupo que faz a trilha, Jovino percebe que a turma se interessa pelo assunto. Não perde a oportunidade e nem o fôlego para contar a história.

Uma pegada deixada pela danada logo à frente nos surpreende. Por ali é a onça-pintada a dona do pedaço. A informação inspira medo em alguns andarilhos. “O que?! Passa aqui?”. Sorriso maroto, chapéu calmamente reajeitado e Jovino não perde o pique.

“Podem dizer o que quiser, mas eu não confio que ela só come bicho.” Nossa atenção é a de netos prestes a escutar a história da avó. Estávamos sem ar diante de tanta subida, mas fomos esquecendo o mal-estar.

À tarde - Contam por aí, que no fim de uma tarde uma senhora calunga saiu rumo a uma pequena plantação ali por perto. Foi apanhar açafrão, aquele que tempera a comida. “A véia começou a fazer um montinho do lado da plantação. Tinha Sol ainda”, conta Jovino. Com paciência e pausas, emenda: “Nem era noite ainda, sabe? E a onça só sai tarde da noite. Então a véia foi despreocupada.”

“Naquele dia não sei o que aconteceu”, completa. “A onça devia ter passado noite sem caça”, arrisca. Passado um tempo, o sumiço da velha começou a preocupar. “A filha deu por falta. A madrugada entrou e nada.” A suspeita era de que algo pior acontecera. “Pensaram certo. No outro dia foram procurar.”

No local onde a calunga amontoara o açafrão, havia um rastro de sangue. Nenhum outro sinal de ataque, porém. Mas não tardou para vir confirmação. “Nunca encontraram o corpo”, diz o calunga em tom sério, mas sem demonstrar tratar-se de uma conhecida. “A única coisa que conseguiram achar foi o pé da véia”, fala, ao risos.

Com açafrão – Em meio às caras perplexas, nosso guia percebe o total interesse pela história. Percebo que se satisfaz. Muitos não se dão conta de que conseguimos subir boa parte da trilha. Sem notar o desconforto físico, sem reclamar. O interesse continua. Pelo caminho encontramos mais pegadas da bichana.

O medo inicial de alguns de sermos atacados em plena luz do dia aos poucos se dilui. “Ela só sai realmente de noite”, afiança Jovino com seu marcante sorriso maroto. A esta altura nossos passos já estão mais leves e o guia, satisfeito. Sobra até espaço para uma piadinha infame.

“A onça é esperta, sabia seu Jovino?”, brinca um dos andantes. “Ah, é? Por quê?”, retruca ele, com cara de pimpão, imaginando a resposta acompanhada dos risos inevitáveis. “É que ela já comeu a velha temperada”.

domingo, 27 de julho de 2008

 

Quando o singelo se torna o melhor

Em um fenômeno recente, animações surpreendem pela qualidade, batendo muitos roteiros vividos por gente de carne e osso

Por Rodrigo Alves

Um fenômeno tem se tornado grata surpresa na indústria cinematográfica nos últimos anos. Não é raro encontrar boas animações que se destacam pela apuração das temáticas sofisticadas em seus roteiros, ainda que continuem prioritariamente voltadas para crianças, assim como tem sido desde o surgimento do gênero.

Um exemplo recente é Wall-E (foto em destaque), feita em parceria entre a Pixar e a Disney, que desde o sucesso estrondoso de Shrek (EUA, 2001), da concorrente DreamWorks, acordou de vez para o fato de contos de fadas, que prezam pelo politicamente correto como Cinderela (EUA, 1950) e companhia, estão obsoletos.

Wall-E, em sua primeira terça parte, conseguiu o que o protagonista Will Smith e o diretor Francis Lawrence não conseguiram na refilmagem de Eu Sou a Lenda (EUA, 2007): passar de maneira sensível, sem pieguice, o drama do tema, no caso a solidão.

O robozinho Wall-E, por paradoxal que seja, é a melhor expressão humana do que é se sentir sozinho. De quebra ainda ganhamos com uma trilha sonora sofisticada, que inclue entre outros presentes uma bela interpretação de La Vie En Rose de Louis Armstrong.

Um observador mais atento dos ambientes das salas de cinema poderá notar que a imagem de um adulto que carrega várias crianças (da família, do vizinho, do casal amigo) está rara. Cada casal tem levado seus filhos. Surpresa maior é quando o casal está sem crianças, isto é, não usou nem a desculpa de serem meros acompanhantes.

Antenados - A explicação é que os roteiros são cada vez mais pensados para atender todas as faixas etárias. Haveria uma infantilização do público? Não. Assim como os filmes cult-pop, que com suas questões existencialistas conjugadas às imagens de tirar fôlego atendem aos exigentes em relação ao conteúdo e aos que querem só diversão, essas animações investem em questões caras e íntimas a qualquer ser humano.

Uma das possíveis causas desse fenômeno refere-se ao fato de que diretores/autores têm, ou julgam ter, mais domínio sobre suas criações e sentem-se livres para ousar mais. Moldados às suas conveniências, personagens virtuais atingem maior grau em suas exigências (esbarrando somente na limitação tecnológica). Exagero à parte, nesta toada logo poderemos brincar que atores de carne e osso que se cuidem.

Comparação - Só para efeito de análise, se permitem, vou comparar a animação Ratatouille (segunda foto), também da Pixar/Disney, dirigido por Brad Bird; o nacional Cazuza – O Tempo Não Pára (terceira foto), dirigido por Sandra Werneck e Walter Carvalho; e o suspense 1408(quarta foto), dirigido por Mikael Hafström.

Com um orçamento e uma estrutura à altura de Titanic (EUA, 1997), de James Cameron, 1408 é uma adaptação famigerada da obra do escritor esquisitão Stephen King. Todo a produção esmerada e os efeitos especiais são pouco perto do roteiro que tem uma narrativa pobre e cheia de clichês e traz uma apagadíssima atuação de John Cusack, protagonista.

Cazuza tem um nível intermediário. Descontando a pequenez do orçamento de cinema nacional perto do hollywoodiano, ele promete mais do que realmente poderia. Trata-se de uma obra pouco ousada, que restringe-se à narração cronológica, que explora pouco as nuances de seu personagem biografado e o visa de maneira romantizada demais. Seu trunfo é a ótima atuação de Daniel de Oliveira como Cazuza.

Mas é Ratatouille o melhor. Destaca-se entre os três porque dele nada se espera. A princípio é mais um filme sobre ratinhos humanizados. Aproveitando-se disso, porém, discute a questão da auto-estima e mostra que no mundo moderno qualquer um tem potencial para ser o que quiser. Surpreende mais ainda por fugir de um desfecho óbvio e por se atrever a fazer poesia visual em certos momentos. Ponto para a animação.

Serviço

Em cartaz em todo o País:
Wall-E (Idem) – EUA, 2008. 97 min. Animação. Direção de Andrew Stanton. Com vozes de Ben Burtt, Elissa Knight, Jeff Garlin, Sigourney Weaver. Site:
www.disney.com.br/cinema/walle

Em DVD:
Ratatouille (Idem) – EUA, 2007. 110 min. Animação. Direção de Brad Bird. Com vozes de Patton Oswalt, Ian Holm, Lou Romano, Brian Dennehy. Distribuidora: Buena Vista International. Site:
www.disney.com.br/ratatouille

Cazuza - O Tempo Não Pára – Brasil, 2004. 110 min. Drama. Direção de Sandra Werneck e Walter Carvalho. Com Daniel de Oliveira, Marieta Severo, Reginaldo Faria, Andréa Beltrão, Leandra Leal, Maria Mariana, Débora Falabella, Maria Flor. Distribuidora: Columbia TriStar do Brasil.

1408 – EUA, 2007. 94 min. Suspense, terror. Direção de Mikael Hafström. Com John Cusack, Mary McCormac, Tony Shalhoub, Samuel L. Jackson. Distribuidora: Paramount. Site:
www.1408-themovie.com

Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

domingo, 20 de julho de 2008

 

Existencialismo e ação do homem-morcego

Batman está mais sombrio que com Tim Burton há 20 anos e deve isso em parte à atuação memorável de Heath Ledger como Coringa

Por Rodrigo Alves

Destruição. Batman, desta vez, conhece o sentido mais íntimo e profundo desta palavra em O Cavaleiro das Trevas. Uma força que leva até as últimas conseqüências aquilo que crê como justificativa de sua existência. É Coringa, o vilão da série que mais bem se encaixa na antagonia com o herói. “Eu sou o caos”, define-se o próprio personagem.

Ele personifica a forma de anarquizar a ordem da maneira mais temível. Há muito tempo não se via no cinema uma composição de personagem que despertasse nossos medos mais íntimos, nem mesmo em filmes de suspense ou terror. Que fizesse aflorar em nós e nos obrigasse a encarar da maneira mais crua o que mais tememos: o desejo íntimo pela violência e auto-destruição. Coringa o é de maneira inabalável.

Heath Ledger, que dá vida ao personagem, está diante de seu melhor papel. Bate mesmo o seu quase insuperável Ennis Del Mar, de O Segredo de Brokeback Mountain. Não há como não reforçar os elogios repetidos a essa composição feita por ele (o ótimo Jack Nicholson que desculpe, mas perdeu o posto de melhor).

Voz, trejeitos, um jeito desconcertante de ajeitar a saliva na boca, tudo faz que Ledger roube o adjetivo de excepcional que, em Batman Begins (2005), coube a Christian Bale como o personagem-título. O protagonista continua muito bom, mas perde a cena. Nesta segunda parceira com o diretor Christopher Nolan, Bale encarna um Batman (ou Bruce Wayne) que, dois anos depois do surgimento, vive sua primeira crise existencial.

Fardo - É a primeira vez que o homem-morcego sente o fardo de carregar a máscara negra. A pecha de herói foge dos limites do suportável. E mais: nem é reconhecido como tal, já que um novo promotor público, de rosto conhecido, assume o posto de paladino de Gotham City.

Originalmente, O Cavaleiro das Trevas é o nome da minissérie mais cultuada do personagem em gibi. Um trabalho soturno e denso de Frank Miller que apresenta o herói no auge dos 60 anos de idade, de volta à ativa após um longo período afastado, mas que tem de encarar uma realidade diferente da que vivia antes.

No gibi, antes os heróis eram vistos como algo benéfico aos cidadãos de Gotham. No filme, agora, a situação é a mesma. Os criminosos, no entanto, têm muito a temer. Com a ajuda do Comissário James Gordon (Gary Oldman) e do promotor Harvey Dent (Aaron Eckhart, outra atuação memorável) - que depois se tornará o vilão Duas Caras -, Batman luta contra o crime organizado que passa a ser comandado por Coringa.

Da direção de Christopher Nolan, nasce mais um representante do tipo de filme que tem ganhado espaço na indústria cinematográfica: o cult-pop. Ou seja, aquele que eleva ao êxtase visual tanto os mais interessados em se divertir e ver cenas arrasadoras quanto satisfaz os mais preocupados em discutir questões existenciais.

Excelência - Para completar a excelência da obra, um elenco formado pelos competentíssimos Michal Caine (Alfred, o mordomo inseparável), Morgan Freeman (o braço direito nas Indústrias Wayne, Lucius Fox) e a decisão acertada Maggie Gyllenhall (é preciso frisar que ela é melhor que Katie Holmes, substituída como intérprete da destemida advogada Rachel Dawes, par romântico de Bruce).

Tivesse morrido ou não, e descontada a mística em torno disso e o natural marketing que o fato gera, Ledger já teria feito o melhor trabalho de sua carreira até então. A constatação se consolidou em 22 de janeiro deste ano, quando ele morreu de overdose de remédios. Com sua ajuda Batman conheceu sua melhor antítese, um sociopata assustadoramente sem limites, que bem o define: o herói que não é considerado herói. Como diz Gary Oldman, como o Comissário Gordon: “Batman é o herói que Gotham merece.”

Serviço
Filme: Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight) – EUA, 2008. 142 min. Aventura e Drama
Direção: Christopher Nolan
Elenco: Christian Bale, Michael Caine, Heath Ledger, Gary Oldman, Aaron Eckhart, Maggie Gyllenhall, Morgan Freeman
Roteiro: Jonathan Nolan e Christopher Nolan, baseado em estória de Christopher Nolan e David S. Goyer e nos personagens criados por Bob Kane
Distribuição: Warner Bros
Em Cartaz em todo o País
Site Oficial: http://thedarkknight.warnerbros.com

Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

domingo, 13 de julho de 2008

 

Vitória da sensibilidade

O diretor Julian Schnabel transforma O Escafandro e a Borboleta em uma obra delicada, que desperta a empatia do espectador

Por Erika Lettry


Jean-Dominique Bauby (Mathieu Amalric) é um homem dinâmico e cheio de vivacidade. Mas isso só saberemos muito tempo depois do início do filme O Escafandro e a Borboleta. Nas primeiras cenas teremos que nos adaptar, como o personagem, a enxergar tudo de forma diferente.

O plano inicial é o abrir de olhos de Bauby, recém-saído do coma. Imagens difusas dançam diante de si e ele compreende que sofreu um acidente vascular cerebral (AVC), perdeu a capacidade locomotora e a fala. O que ele restou foi o raciocínio rápido, o sarcasmo e o movimento de um único olho. É munido destas característicias que ele vai ditar o livro que dá título ao filme.

Ao narrar sua história para uma ajudante, que usa um código especial (foto) para se comunicar com ele, saberemos que ele tem 43 anos, era editor da revista francesa Elle, possuía uma dezena de casos de amor mal-resolvidos e via os filhos com pouca freqüência. Após o AVC ele percebe quanto tempo desperdiçou em nome do sucesso e da boa vida.

No início do filme aparece Bauby inconformado com sua situação. A opção do diretor Julian Schnabel de mostrar o ponto de vista do personagem é que torna o filme sensível e garante a empatia do público. Com o tempo Bauby aceita sua condição, esforçando-se para adaptar-se.
Um dos grandes triunfos do filme é evitar a cair pieguice. Para tanto o diretor ressalta o lado bem-humorado do personagem, que consegue fazer piada de si mesmo. Vale lembrar que a história é baseada na história real do jornalista.

Mathieu Amalric faz um trabalho primoroso com Bauby e vale a ida ao cinema. Como deve ter ocorrido com o verdadeiro Bauby, é difícil imaginar que o mesmo ator é responsável por encarnar o editor em suas duas fases da vida. O Escafandro e a Borboleta é, em todos os sentidos, uma pequena obra-prima que merecer ser apreciada.
Serviço
Filme
: O Escafandro e a Borboleta (Le Scaphandre et le Papillon) – França/EUA, 2007. 112 min. Drama
Direção: Julian Schnabel
Elenco: Mathieu Amalric, Emmanuelle Seigner, Marie-Josée Croze, Anne Consigny, Patrick Chesnais
Roteiro: Ronald Harwood, baseado em livro de Jean-Dominique Bauby
Música: Paul CantelonFotografia: Janusz Kaminski
Distribuição: Miramax Films / Europa Filmes
Site oficial:
http://www.lescaphandre-lefilm.com/
Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural