sábado, 20 de outubro de 2007

 

Tá gostoso... mas faltou pimenta

Apesar de deslizes, peça de Pedro Vasconcelos é fiel ao texto de Jorge Amado, como prometeu, e faz jus à obra do escritor baiano

Por Erika Lettry

Confesso: foi com certa desconfiança que fui ao Teatro Goiânia nesta sexta-feira assistir à peça Dona Flor e Seus Dois Maridos. Primeiro porque sou apaixonada pelos livros de Jorge Amado desde que li Capitães da Areia na adolescência. Afinal de contas, como transportar para o teatro toda carga de sensualidade, misticismo e humor das personagens do escritor baiano?

A segunda desconfiança foi em relação ao elenco. Atores com pouca experiência no teatro e que sempre apresentaram peças convencionais demais, globais demais, comerciais demais (com as poucas opções de teatro na cidade, é comum aparecer caça-níqueis por aqui...), é de deixar qualquer um com a pulga atrás da orelha...

Mas a versão para o teatro de Dona Flor e seus Dois Maridos, que teve ontem sua estréia nacional, me surpreendeu de forma positiva. Estava tudo lá, do jeitinho que Jorge Amado gostaria de ver: diálogos maliciosos, sensualidade, bom humor, crítica à hipocrisia e aos recalques e defesa da liberdade sexual feminina. Tudo isso permeado com aquele sotaque mole e gostoso dos baianos, que o diretor Pedro Vasconcelos fez questão de reforçar.

E já antes do elenco entrar em cena, o público foi sendo transportado para este universo do escritor. Aliás, quer combinação mais acertada do que o texto de Amado com a música de Dorival Caymmi? E, para completar, um cenário que lembra as ruas do Pelourinho de Salvador? Se a idéia era fazer o público entrar no clima da peça, conseguiram.

A peça cumpre a promessa feita pelos atores e direção de ser fiel ao livro e começa com a morte de Vadinho em pleno Carnaval. Da platéia surgem os atores em clima de festa, cantando, dançando e tocando tambores. Até que Vadinho, interpretado por Marcelo Faria, cai morto no chão. A cena é cortada para, em seguida, mostrar o enterro do marido de Dona Flor.

De um lado estão os amigos, relembrando as pilhérias do falecido. Do outro lado as mulheres, comentando o quanto Dona Flor sofreu com a infidelidade e os vícios do marido. Em flashback, é mostrada a história do casal, como se conheceram e se casaram, e como a personagem sofreu nas mãos do marido irresponsável.

Depois de relembrar a vida do casal, a cena volta com Dona Flor sendo consumida pelo desejo, o que a incentiva a encontrar um marido. A personagem acaba se casando com o farmacêutico Teodoro, o oposto de Vadinho. É quando ela percebe que, apesar de estar com um bom marido, não consegue viver com a rotina no sexo e chama pelo falecido. Passa então a viver em contradição, até notar que precisa dos dois maridos para ser feliz. Um lhe dá estabilidade, enquanto o outro reaviva seu desejo.

Com uma narrativa cativante – o que, sendo fiel ao texto de Jorge Amado, nem deve ser tão difícil –, a única frustração da peça fica por conta da atuação de Carol Castro no papel principal. Visivelmente nervosa no início da apresentação – afinal, é a primeira vez que protagoniza uma peça de teatro –, a atriz foi recuperando o fôlego no decorrer da encenação. Mas não conseguiu disfarçar a má composição da personagem.

Nem de longe a atriz conseguiu alcançar a força e o carisma que as personagens de Jorge Amado encarnam na literatura brasileira. Basta lembrar que no cinema Sônia Braga foi inesquecível no papel de Dona Flor. Exemplos para inspirá-la em uma boa atuação em personagens do autor nunca faltaram: Patrícia França, no papel de Tereza Batista, Betty Faria como Tieta ou mesmo Giulia Gam com Dona Flor. Mas a moça disse que preferiu não assistir nada antes da peça...

Já no teatro, quem rouba a cena é Marcelo Faria que, no papel do cafajeste Vadinho, conquistou a platéia. Ele mostrou jogo de cintura na rápida cena em que aparece em nu frontal. “Só peço uma coisa: por favor, não coloquem minha bunda na internet”, brincou durante os agradecimentos ao final. Isso sem falar nos atores coadjuvantes – como a mãe e a amiga de Dona Flor. Protagonista de obra do Jorge Amado sem sal? Hum... Por causa de Carol Castro, a impressão que se tem é de que esqueceram de colocar pimenta no acarajé.

P.S. – Apesar da “falha”, recomendo a peça aos espectadores que poderão ver a peça na turnê nacional.


Sessão Extra
Além das próximas sessões previstas em Goiânia, uma para daqui a pouquinho, às 21 horas, e outra amanhã, domingo, às 20 horas, o sucesso de vendas adicionou sessão dominical extra às 18 horas. Veja o serviço no post Muito Bem Acompanhada, abaixo.


Perólas de Vadinho na peça, do repertório de Jorge Amado

“– Que mal há nisso, meu bem? Que é que tem? Deixa minha mão ficar aí, não estou te tirando pedaço, nem te alisando, o que é que tem?”

“Tu está tão bonita, tu nem sabe... Tu parece uma cebola, carnuda e sumarenta, boa de morder...”

“Não posso impedir, mas, apertando um pouco cabe nós três...”

“Deus é Gordo”

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

Foto: Divulgação/Guilherme Maia

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi Rodrigo! Muito legal o blog. Vcs poderiam colocar também comentários sobre DVDs. Eu adoro cinema, mas tb gosto de ver um filminho em casa. Nesse feriado mesmo, pegamos 5. Sobre a peça, muito bom o texto. A foto tá impagável. Essa cara de "última cocada nordestina" do Marcelo Faria tá demais. Abraço, Marina