sábado, 12 de janeiro de 2008

 

O homem que o metrô não matou

Um ano após o acidente das obras na estação de Pinheiros, em São Paulo, conheça a história do motorista Emerson Nascimento

Por Thiago Arantes

Às 14h11 do dia 12 de janeiro de 2007 – exatamente há um ano –, o motorista Emerson dos Santos Nascimento, 26 anos, sairia com a van 20041 para mais uma viagem da Casa Verde à estação da CPTM de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Era a hora dele. Emerson não foi. Cansado por ter começado a trabalhar às 4h30 e ainda sem almoçar, pediu para trocar a vez com um colega. Era Reinaldo Aparecido Leite, 40 anos, com a van 26487.

Cerca de 40 minutos depois, quando Reinaldo acabara de começar o caminho de volta, o veículo conduzido por ele caiu na cratera aberta pelo acidente nas obras da estação Pinheiros, linha amarela do metrô de São Paulo. O motorista, o cobrador Wescley Adriano da Silva e os três passageiros morreram soterrados. Um pedestre e um funcionário que trabalhava nas obras, também.

Emerson deixou o ponto na Casa Verde cinco minutos depois do colega. Assim que chegou ao local do acidente, tentou contato. Sem sinal. Oito meses depois, continua na linha Casa Verde-CPTM Pinheiros. Trabalha dez horas por dia, ganha R$ 1.200, faz entre oito e nove viagens – o trânsito da metrópole dita o ritmo.

Calado, nem por isso tímido, o motorista evita lembrar-se daquela sexta-feira. Abordado por este repórter – que procurava confirmar a história de que um colega havia trocado de horário com Reinaldo –, baixa a cabeça, suspira brevemente e, olhos fixos, diz em voz baixa. "Sou eu mesmo."

"Mas não gosto de falar disso", emenda. "E preciso ir embora. Só se você quiser me entrevistar dentro da van". São 17h30 de quinta-feira, véspera do feriado de 7 de setembro. Emerson ainda não sabe se vai ter folga para viajar. A van deixa o ponto final na Casa Verde com três passageiros.

Gente Boa - No primeiro semáforo, o motorista gira o pescoço para o lado, tenta manter contato visual comigo, fala que não deu entrevistas sobre sua história daquele 12 de janeiro. "Nunca me procuraram para falar disso. Uma vez a televisão me entrevistou, mas era para falar do Reinaldo. Ele era muito gente boa, trabalhador."

E por que não disse à TV que havia trocado de escala com ele? "Seria um desrespeito, né? A família passando por um momento difícil e eu falando que escapei, que era para ter sido eu.”

Reinaldo tinha esposa e três filhos. Emerson namora há dois anos. "Quando contei para ela que eu tinha trocado a escala com o colega que morreu, ela ficou em pânico". Emerson também ficou. Não dormiu até o início da manhã seguinte ao desabamento. "Só saí lá de perto às 2h. Ainda não sabiam o que tinha acontecido."

Morador do bairro da Casa Verde, quase vizinho do ponto final de sua linha, o motorista raramente usa o metrô. "Quase não ando, mas gosto. Acho seguro", diz. Sobre o acidente, resignação. "Obras assim sempre são perigosas. Meu pai perdeu parte da perna por causa de um acidente em uma obra também". O pai de Emerson, aposentado por invalidez, gosta de rádio. "Escuta o dia todo."

O filho parece não gostar. Durante a viagem, não liga o rádio da van. Divide seu tempo entre a entrevista, as piadas do bem-humorado cobrador David e outro rádio, o comunicador da empresa – ou, como diz, o "nextel". O trânsito testa a paciência dos passageiros, mas o motorista parece tranqüilo. "Estou em primeira, ponto morto, primeira, ponto morto...", diz ao rádio. Ri, olha para trás, "esse horário é assim mesmo".

Corinthians - Ao lado da estação Barra Funda do metrô, mais passageiros sobem, os assentos minguam, o calor aumenta. O ar condicionado luta contra a aglomeração. Perde. Um jovem com a camisa do Palmeiras acena. "É sofredor, mas deixa ele entrar", brinca o cobrador e corintiano David. "Entrar pode, mas sentar, não", emenda Emerson, também corintiano. "Você torce para o Corinthians?", pergunta ao repórter. Diante da resposta negativa, muda de assunto. "Já faz quanto tempo mesmo do acidente?"

São oito meses. "Parece que faz mais tempo. Mas também lembro como se fosse ontem", contradiz-se. Depois de buscar na memória uma referência temporal, concorda. "É verdade, são oito meses mesmo. Eu tinha começado três semanas antes como motorista. Fui cobrador, por três anos. Passei da contabilidade para a direção", brinca.

Uma passageira escuta a conversa e intervém. "Estão falando do acidente do metrô? Nossa, terrível, né?". Emerson acena com a cabeça, sempre tentando olhar para trás. O trânsito permite, a van quase não se move. A mão esquerda divide-se entre o volante e o comunicador. A direita repousa no câmbio em tempo integral.

O motorista responde às perguntas como se estivesse preparado desde sempre para enfrentá-las. E não se emociona ao pensar que poderia ser ele uma das vítimas. "Não faz bem pensar assim. Se eu ficar pensando que era para ter morrido, não vou conseguir viver direito". Abandonar a linha ou a profissão também está fora de questão. "Todo trabalho tem o seu risco. Não adianta fugir."

O trânsito melhora, o tempo passa, e a estação CPTM de Pinheiros se aproxima. A noite já encobre os últimos raios de sol quando Emerson, curioso, volta ao assunto. "A queda foi de quantos metros, será? Uns 50?". Foram 30 m, segundo informações fornecidas pela construtora responsável pelas obras. "Ah, não tinham chance de sobreviver. O carro ficou parecendo uma lata de sardinha. Eu vi quando tiraram".

“Você acostuma” - Desde o acidente, a rota da van foi desviada da Rua Capri – parcialmente destruída pelo desabamento – para a Eugênio de Medeiros. Cones, fitas bicolores de segurança, caminhões e funcionários das obras do metrô compõem a paisagem. Pedreiros reforçam as estruturas das casas nas ruas vizinhas. "Todo mundo ficou com medo", diz um segurança das obras da linha 4. Antes de falar, ele tira o crachá do peito.

Emerson já se acostumou. "Nas primeiras vezes que passei por aqui, senti uma coisa ruim. Mas aí você passa todo dia, tantas vezes, que se acostuma. Tem que acostumar, senão fica louco", diz, enquanto encosta a van no ponto final em Pinheiros.

O descanso habitual de cinco minutos é revogado por ordem do "nextel". "Tá bom, tá bom, vou agora, diretão", diz, sem praguejar contra o comando invisível. "Está puxado, hoje. Véspera de feriado é assim sempre". Há tempo para uma última pergunta, sobre o que mudou na forma de encarar a vida depois do acidente. "Nada. Eu sempre dei muito valor", diz Emerson. "Só não era minha hora."

Thiago Arantes é jornalista

Sobre o repórter
Tem 25 anos, nasceu em Goiânia, mudou-se para São Paulo há dois anos, depois de uma escala de outros quatro em Brasília. Embora goste de procurar personagens nas ruas da metrópole, o texto acima surgiu por acaso, em setembro de 2007, quando buscava uma pauta sobre o metrô paulistano.

Foto: O Globo

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