segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

 

Conto de fadas adulto

O Labitirinto do Fauno consegue mesclar a dura realidade da guerra espanhola com um mundo de fantasia que agrada aos mais velhos

Por Erika Lettry

O sangue que escorre pela boca de Ofélia (Ivana Baquero), personagem principal de O Labirinto do Fauno, indica que há algo diferente no filme do diretor Guilhermo del Toro. Definitivamente não é um conto de fadas para crianças. Ou ao menos não é um conto de fadas para crianças acostumadas a ver a fantasia como respostas diluídas em água-com-açúcar para um mundo que ainda não compreendem.

Lembro do escritor Rubem Alves em um de suas crônicas contando de que forma os contos de fada foram perdendo sua essência para adaptar-se ao universo das crianças. Toda a lição construída na narrativa acaba sempre destruída pelo final feliz. Ao invés da esposa de Barba Azul pagar pela desobediência (o ser humano possui lados obscuros não devem ser expostos), o que fez a literatura infantil? Trouxe heróis para salvarem a esposa de Barba Azul da morte horrenda.

Se O Labirinto do Fauno partisse deste princípio, não ia passar de um filme de conto de fadas como tantos que vemos por aí. Rasos, previsíveis e de fácil esquecimento. Mas a obra de Guilhermo del Toro opta pelo caminho mais difícil: conectar fantasia com a crueldade que é característica do mundo “real”. Para explicitar este enlace, o tom sombrio da fotografia é marcante e transita entre os dois universos. Já na narrativa Ofélia toma conhecimento de sua história verdadeira e do que terá que fazer para recuperá-la. É quando se percebe que a realidade e a fantasia, afinal, não são universos tão distantes assim.

O início do filme conta brevemente a história de uma princesa que vivia no reino subterrâneo mas era louca para conhecer a humanidade e o brilho do sol. Certo dia conseguiu fugir de seu reino e passou a viver entre os homens. Teve então que conviver com a fome, dor, humilhação e tristeza, morrendo e renascendo sempre para cumprir este destino. Depois disto conhecemos a garota Ofélia, que adorava ler contos de fadas, e ficamos sabendo que é a tal princesa.

Junto com a mãe Carmen (Ariadne Gil) foi viver no campo com o Capitão Vidal (Sergi Lopez), que lutava para combater os que eram contrários à ditadura fascista do general Franco, que governava a Espanha. Comandava a região e a casa com uma violência que muitos tacharam como banal e desnecessária. Eu, que costumo repudiar este tipo de escolha, tive que discordar. A violência explícita não apenas é necessária como primordial na composição do filme. É o choque de realidade que o filme precisava para reforçar seu maior mérito: mostrar que a fantasia não serve para que fechemos os olhos à realidade, e sim para que possamos buscar mais além.

Convivendo com a Guerra Civil espanhola e a crueldade de Vidal, Ofélia acaba deparando-se com a possibilidade de ir ao encontro de um destino mais afável. Encontra um fauno que lhe conta sua história e que propõe que ela cumpra três tarefas para que possa voltar ao mundo subterrâneo. Tarefas das quais conhece os perigos, mas decide enfrentar. Sinal de que compreendeu e aceitou as conseqüências de seus atos. E, afinal, melhor também arriscar e buscar uma esperança que viver a realidade onde parece não haver solução possível.


Serviço
Filme (DVD): O Labirinto do Fauno (El Laberinto del Fauno) – México, Espanha, EUA, 2006. 112 min. Suspense.
Direção: Guilhermo del Toro
Elenco: Ivana Baquero (Ofelia), Doug Jones (Fauno), Sergi López (Capitão Vidal), Ariadna Gil (Carmen)
Distribuidora: Warner Bros. Pictures
Preço médio: R$ 19,90
Site: www.panslabyrinth.com

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

sábado, 12 de janeiro de 2008

 

O homem que o metrô não matou

Um ano após o acidente das obras na estação de Pinheiros, em São Paulo, conheça a história do motorista Emerson Nascimento

Por Thiago Arantes

Às 14h11 do dia 12 de janeiro de 2007 – exatamente há um ano –, o motorista Emerson dos Santos Nascimento, 26 anos, sairia com a van 20041 para mais uma viagem da Casa Verde à estação da CPTM de Pinheiros, na cidade de São Paulo. Era a hora dele. Emerson não foi. Cansado por ter começado a trabalhar às 4h30 e ainda sem almoçar, pediu para trocar a vez com um colega. Era Reinaldo Aparecido Leite, 40 anos, com a van 26487.

Cerca de 40 minutos depois, quando Reinaldo acabara de começar o caminho de volta, o veículo conduzido por ele caiu na cratera aberta pelo acidente nas obras da estação Pinheiros, linha amarela do metrô de São Paulo. O motorista, o cobrador Wescley Adriano da Silva e os três passageiros morreram soterrados. Um pedestre e um funcionário que trabalhava nas obras, também.

Emerson deixou o ponto na Casa Verde cinco minutos depois do colega. Assim que chegou ao local do acidente, tentou contato. Sem sinal. Oito meses depois, continua na linha Casa Verde-CPTM Pinheiros. Trabalha dez horas por dia, ganha R$ 1.200, faz entre oito e nove viagens – o trânsito da metrópole dita o ritmo.

Calado, nem por isso tímido, o motorista evita lembrar-se daquela sexta-feira. Abordado por este repórter – que procurava confirmar a história de que um colega havia trocado de horário com Reinaldo –, baixa a cabeça, suspira brevemente e, olhos fixos, diz em voz baixa. "Sou eu mesmo."

"Mas não gosto de falar disso", emenda. "E preciso ir embora. Só se você quiser me entrevistar dentro da van". São 17h30 de quinta-feira, véspera do feriado de 7 de setembro. Emerson ainda não sabe se vai ter folga para viajar. A van deixa o ponto final na Casa Verde com três passageiros.

Gente Boa - No primeiro semáforo, o motorista gira o pescoço para o lado, tenta manter contato visual comigo, fala que não deu entrevistas sobre sua história daquele 12 de janeiro. "Nunca me procuraram para falar disso. Uma vez a televisão me entrevistou, mas era para falar do Reinaldo. Ele era muito gente boa, trabalhador."

E por que não disse à TV que havia trocado de escala com ele? "Seria um desrespeito, né? A família passando por um momento difícil e eu falando que escapei, que era para ter sido eu.”

Reinaldo tinha esposa e três filhos. Emerson namora há dois anos. "Quando contei para ela que eu tinha trocado a escala com o colega que morreu, ela ficou em pânico". Emerson também ficou. Não dormiu até o início da manhã seguinte ao desabamento. "Só saí lá de perto às 2h. Ainda não sabiam o que tinha acontecido."

Morador do bairro da Casa Verde, quase vizinho do ponto final de sua linha, o motorista raramente usa o metrô. "Quase não ando, mas gosto. Acho seguro", diz. Sobre o acidente, resignação. "Obras assim sempre são perigosas. Meu pai perdeu parte da perna por causa de um acidente em uma obra também". O pai de Emerson, aposentado por invalidez, gosta de rádio. "Escuta o dia todo."

O filho parece não gostar. Durante a viagem, não liga o rádio da van. Divide seu tempo entre a entrevista, as piadas do bem-humorado cobrador David e outro rádio, o comunicador da empresa – ou, como diz, o "nextel". O trânsito testa a paciência dos passageiros, mas o motorista parece tranqüilo. "Estou em primeira, ponto morto, primeira, ponto morto...", diz ao rádio. Ri, olha para trás, "esse horário é assim mesmo".

Corinthians - Ao lado da estação Barra Funda do metrô, mais passageiros sobem, os assentos minguam, o calor aumenta. O ar condicionado luta contra a aglomeração. Perde. Um jovem com a camisa do Palmeiras acena. "É sofredor, mas deixa ele entrar", brinca o cobrador e corintiano David. "Entrar pode, mas sentar, não", emenda Emerson, também corintiano. "Você torce para o Corinthians?", pergunta ao repórter. Diante da resposta negativa, muda de assunto. "Já faz quanto tempo mesmo do acidente?"

São oito meses. "Parece que faz mais tempo. Mas também lembro como se fosse ontem", contradiz-se. Depois de buscar na memória uma referência temporal, concorda. "É verdade, são oito meses mesmo. Eu tinha começado três semanas antes como motorista. Fui cobrador, por três anos. Passei da contabilidade para a direção", brinca.

Uma passageira escuta a conversa e intervém. "Estão falando do acidente do metrô? Nossa, terrível, né?". Emerson acena com a cabeça, sempre tentando olhar para trás. O trânsito permite, a van quase não se move. A mão esquerda divide-se entre o volante e o comunicador. A direita repousa no câmbio em tempo integral.

O motorista responde às perguntas como se estivesse preparado desde sempre para enfrentá-las. E não se emociona ao pensar que poderia ser ele uma das vítimas. "Não faz bem pensar assim. Se eu ficar pensando que era para ter morrido, não vou conseguir viver direito". Abandonar a linha ou a profissão também está fora de questão. "Todo trabalho tem o seu risco. Não adianta fugir."

O trânsito melhora, o tempo passa, e a estação CPTM de Pinheiros se aproxima. A noite já encobre os últimos raios de sol quando Emerson, curioso, volta ao assunto. "A queda foi de quantos metros, será? Uns 50?". Foram 30 m, segundo informações fornecidas pela construtora responsável pelas obras. "Ah, não tinham chance de sobreviver. O carro ficou parecendo uma lata de sardinha. Eu vi quando tiraram".

“Você acostuma” - Desde o acidente, a rota da van foi desviada da Rua Capri – parcialmente destruída pelo desabamento – para a Eugênio de Medeiros. Cones, fitas bicolores de segurança, caminhões e funcionários das obras do metrô compõem a paisagem. Pedreiros reforçam as estruturas das casas nas ruas vizinhas. "Todo mundo ficou com medo", diz um segurança das obras da linha 4. Antes de falar, ele tira o crachá do peito.

Emerson já se acostumou. "Nas primeiras vezes que passei por aqui, senti uma coisa ruim. Mas aí você passa todo dia, tantas vezes, que se acostuma. Tem que acostumar, senão fica louco", diz, enquanto encosta a van no ponto final em Pinheiros.

O descanso habitual de cinco minutos é revogado por ordem do "nextel". "Tá bom, tá bom, vou agora, diretão", diz, sem praguejar contra o comando invisível. "Está puxado, hoje. Véspera de feriado é assim sempre". Há tempo para uma última pergunta, sobre o que mudou na forma de encarar a vida depois do acidente. "Nada. Eu sempre dei muito valor", diz Emerson. "Só não era minha hora."

Thiago Arantes é jornalista

Sobre o repórter
Tem 25 anos, nasceu em Goiânia, mudou-se para São Paulo há dois anos, depois de uma escala de outros quatro em Brasília. Embora goste de procurar personagens nas ruas da metrópole, o texto acima surgiu por acaso, em setembro de 2007, quando buscava uma pauta sobre o metrô paulistano.

Foto: O Globo

domingo, 6 de janeiro de 2008

 

O nosso samba

Entenda como a música considerada “nossa” aos poucos foi sendo construída para se tornar legítima representante de brasilidade

Por Erika Lettry

No ano passado o samba foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil, sob registro do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Sambistas famosos como Nelson Sargento comemoraram o reconhecimento declarando que “o samba é agora cidadão brasileiro com todas as letras”.

O reconhecimento, para muitos, foi tardio. Afinal de contas, há anos o gênero musical é referência dentro e fora do Brasil, tido como símbolo maior de nossa brasilidade. Não à toa compõe a famosa tríade que muitos estrangeiros que pisam por aqui repetem sem o menor pudor: o Brasil é lugar de “samba, futebol e mulher”.

Mas afinal, de que forma o samba conseguiu alcançar o status de gênero nacional por excelência? O antropólogo Hermano Vianna arriscou algumas respostas no livro O Mistério do Samba. Retrocedendo em alguns pontos da história do país, ele mostra que samba tornou-se componente da identidade do brasileiro. Menos pela índole das pessoas que por uma série de construções que abarcam, de certa forma, uma verdadeira força-tarefa na tentativa de unificar o Brasil usando a música como referencial.

Samba pela história - Datar precisamente o momento da penetração da cultura popular nas rodas da elite brasileira não é fácil. Muitas suposições e pouca análise criaram mitos arraigados como, por exemplo, o de que o samba deixou de ser subitamente um ritmo marginal do começo do século passado (tocado apenas nas favelas, pelos “malandros”) e passou a ser aceito pela classe dominante, até chegar ao momento “mágico” em que foi nomeado símbolo do Brasil.

Em seu livro, Hermano Vianna mostra que esta passagem não foi súbita e nem mesmo tão desinteressada como muitos acreditam. O antropólogo enumera vários nomes (como Catulo da Paixão Cearense e Laurindo Rabello) que, com suas modinhas, lundus e toadas sertanejas, fizeram sucesso entre a elite brasileira e deram espaço para que o ritmo nacional ascendesse.

Esta pequena ascensão era, contudo, apenas um esboço do que viria. A valorização das “coisas do Brasil” só ganhou contornos mais nítidos quando se acelerou a discussão sobre a descentralização do país. O problema da unidade da pátria ganhou notoriedade entre os intelectuais como, por exemplo, Afonso Arinos, tendo mais tarde seu apogeu com Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala.

O projeto de unificação nacional, embora já tivesse sido esboçado em algumas situações, não chegou a ser algo claramente definido. Somente com a chegada da República é que se sentiu verdadeiramente a necessidade de construir um símbolo nacional que substituísse o da coroa.

O que ocorreu, entretanto, foi a criação de oligarquias que valorizaram ainda mais a regionalização do país, dificultando o projeto de centralização. Foi neste período que prevaleceu a famosa política café-com-leite, quando as oligarquias aproveitavam deste traço descentralizador para dominar o país.

Construção - Essas tendências regionalistas só foram “sufocadas” em 1930, quando o gaúcho Getúlio Vargas chegou à presidência da República. E é justamente nesse período que o samba consolida-se verdadeiramente como ritmo nacional, em uma construção que uniu a política, a intelectualidade brasileira e as camadas populares.

Tais tendências de valorização do nacional não tinham a ver com uma volta às raízes do Brasil, mas sim com a criação dessas raízes. O modelo de autenticidade do Brasil não foi fruto de uma escolha de algum modelo regional de brasilidade, mas foi fabricado após a ascensão de Getúlio Vargas unindo os diversos elementos do país.

Hermano Vianna considera o final dos anos 1920 como o período de nacionalização do samba, tendo como mediadores músicos, representantes do governo e intelectuais como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Gilberto Freyre. Segundo o estudioso, eles teriam papel fundamental na execução de um processo de criação da identidade brasileira, tendo o samba como principal elemento. Aquele que seria considerada como a “nossa música”.

Erika Lettry é jornalista, especialista em Jornalismo Cultural e autora da monografia O Brasil de Ruy Castro: O Jornalismo e a Construção de Uma Identidade Cultural Brasileira

Foto: Mantelli
(captada no site Flickr)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

 

Sorriso como remédio

Para abrir 2008 conheça a história de Luzianira Campos, voluntária do Hospital das Clínicas de Goiânia

Por Hebert Regis

O azul das paredes reforça a sobriedade. De longe, as árvores circundam o quarteirão do Hospital das Clínicas (HC) de Goiânia, como se quisessem protegê-lo. Além das árvores e dos sentimentos que permeiam o ambiente do hospital, uma reforma na parte interna modifica a paisagem. Dentro concentra-se uma multidão apressada, sempre com uma queixa, seja de dor ou da espera para o atendimento. É sempre na agonia que as verdadeiras reações se afloram.

Nas mãos de médicos e enfermeiros a cura pode estar dentro de um frasco ou em cartelas de medicamentos. Só que naquele momento, os profissionais parecem desconhecer uma solução apaziguadora para os olhares perdidos, que buscam compaixão, ou mesmo, uma palavra consoladora. Já para Luzianira da Cruz Montes Campos (fotos) o remédio está além das cientificidades dos laboratórios.

É algo que não se encapsula, não se aprende na faculdade, e não se mensura por meio de instrumentos analíticos. De estatura baixa, no máximo 1,55 metro, quadril largo e rosto rechonchudo, ela parece crescer ao subir o pequeno degrau. O Sol, ainda brando por causa das nuvens, ilumina a sua camisa de estampa preta, mas manchadas pelos coloridos azuis e amarelos.Apesar de andar um quarteirão para chegar ao hospital, o coque feito em seu cabelo, já uniformemente grisalho, está intacto.

Mesmo com o vento que se abate naquela manhã nublada, ela anda graciosa, sem pressa, observando todos os detalhes, sempre com um sorriso no rosto, como se compartilhasse aquele momento com aquelas pessoas que estavam no corredor. Azar daqueles que não percebem as sutilezas do seu sorriso, um grande remédio para a alma. Se pudesse transparecer o momento de forma física, diria que em volta dela, uma luz com combinações de azul claro e amarelo fogo transcende por onde passa.

Voluntariado - Já no rol de entradas dos ambulatórios, ela agora vira onde a seta indica o nome voluntariado. Luzianira entra no pequeno corredor; continua devagar, com a experiência de quem já passou por tudo. As janelas abertas dos ambulatórios que dão para o corredor não a atrapalham. Olha em volta, vê salas com aparelhos de medir pressão, maca e mesa vazias. Desvia o olhar e segue em frente. A cena se repete nas outras duas janelas, também abertas, por onde atravessa. O silêncio só se quebra com um burburinho de um lugar ainda não identificado.

Na última sala do corredor, a senhora abre a porta por onde entra sempre uma vez na semana, sempre às quartas-feiras. O que se repete há cinco anos. Com os seus bordados a tiracolo, Luzianira finalmente adentra a sala do voluntariado. Saia azul até os joelhos e uma sandália marrom com um pequeno salto, talvez com uns dois centímetros, completam o visual desta bordadeira de mão cheia. Assim também estavam as suas mãos com um bordado ainda por terminar, que também segurava as linhas de crochê.

Como os seus bordados, a sala do voluntariado do HC também desconhece a uniformidade e os padrões. Um pouco maior que um quarto de seis metros quadrados, as suas paredes são brancas, assim como os dos ambulatórios vistos por Luzianira, mas o mosaico de cores e formas se completa com as roupas, de todas as tonalidades, doadas para serem vendidas nos oito bazares realizados durante o ano, geralmente em datas especiais. Destes eventos, é de onde o Voluntariado do HC tira a sua receita para ajudar os pacientes do hospital.

Luzianira senta e começa a bordar. Ao mesmo tempo, não deixa de prestar a atenção em quem entra na sala. Experiência demonstrada não apenas pelas rugas, mas pela calma que conduz a voz e os gestos, nunca bruscos. Veloz só a forma como entrelaça as linhas vermelhas no pano que vai formando pequenas rosas. No momento, estavam mais duas pessoas na sala, ambas cuidando dos adereços para a festa de fim de ano da instituição. Mas os seus ouvidos conseguiam captar os rangidos das portas, sempre seguidos de uma virada de cabeça.

Do sofrimento à doação - Voluntária desde os 17 anos, quando ajudou o Congresso Internacional Religioso e morava no Rio de Janeiro, Luzianira sempre fez trabalhos voluntários. “Sempre ajudei muito. E faço com o coração.” Não havia um motivo pré-estabelecido. Era só a vontade de ajudar. Uma atitude positiva não só em relação aos outros, mas à vida. De miss em Santa Helena, sua cidade natal no interior goiano, aventurou-se ao Rio de Janeiro, quando chegou aos 16 anos.

Depois foi para Brasília trabalhar na área de telemarketing. Em seguida se estabeleceu em Goiânia. Ajudava de forma esporádica, apenas com doações de alimentos e roupas. Nos últimos anos ela intensificou a sua doação ao movimento voluntário, quando o esposo morreu há seis anos de cirrose. “Nós andávamos por estes hospitais, e acabei conhecendo o trabalho do hospital das clínicas. Só depois fui conhecer os outros lugares”.

Pelas manhãs, Luzianira trabalha como voluntária em quatro instituições diferentes. Além do voluntariado do HC, também ajuda com os seus bordados o Grupo Nossa Senhora Auxiliadora e a Associação Goiana dos Diabéticos. No Hospital Araújo Jorge, também de Goiânia, distribui alimentos aos pacientes. Em todos estes locais, ela trabalha em média quatro horas semanais. Às tardes se ocupa com a máquina de costura, de onde ajuda com o sustento da casa.

Mas sempre lembra de produzir peças para o voluntariado. Já que o período de quatro horas, como ela mesma diz, é insuficiente para que possa produzir as peças. Ela vai sempre a pé aos locais, que não são tão distantes do seu apartamento que divide com a filha.

A osteoporose e a hipertensão não a impede de realizar seus afazeres, incluindo as idas aos trabalhos voluntários. Ao contrário, o trabalho voluntário ajuda a envelhecer de maneira ativa. O National Institute of Aging, uma entidade norte-americana, demonstrou recentemente que a atividade do voluntariado produz um bem que ultrapassa a fronteira do psíquico e chega à estrutura do próprio corpo.

Bem-estar - Em resultados práticos, isto quer dizer que as aquelas pessoas acima de 60 anos que fazem atividades voluntárias apresentam maior queima de calorias, 40% superior, do que os idosos que praticam exercícios regulares. A atividade do voluntariado também proporciona sensação de bem-estar, protege contra a ansiedade e a depressão, estimula a energia, ajuda a viver mais, eleva a auto-estima relacionada com maior acesso social, uso dos conhecimentos e sensação de ser útil a alguém.

Com o voluntariado, os idosos mantêm-se socializados, além de fazer atividades no momento em que se deslocam para ir ao local onde são voluntários. Para Luzianira, o sofrimento depois da morte do companheiro transformou-se em uma filosofia de vida que desrespeita a idade, sexo ou status social. O espírito da solidariedade, que há de se ressaltar, é muito mais do que dar esmola a quem necessita ou fazer algum tipo de doação durante os dias das crianças ou Natal. É ter coragem suficiente para doar uma parte do seu tempo.

Apesar de todos os problemas do dia-a-dia, o voluntariado caracteriza-se como uma ação ao outro. Quando pessoas param e refletem, não apenas sobre si, mas sobre o mundo.

Hebert Regis é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

Fotos: Paulo José