sábado, 20 de outubro de 2007

 

Relações Possíveis

As Leis de Família, novo filme do argentino Daniel Burman, mostra buscas ontológicas às reais possibilidades da vida entre pai e filho

Por Fellipe Fernandes

O que você sente quando sai da rotina? Qual o tamanho que esse sentimento toma ao passar dos anos? Qual a intensidade que a si invoca à medida que se envelhece? De que maneira se deve lidar com tais emoções: com o coração incendiado pela juventude ou com a cabeça apaziguada pela idade? Perguntas assim são tão antigas quanto a discussão ontológica do “quem sou eu?”, “de onde eu vim?” e “para onde eu vou?”, mas que no filme As Leis de Família (foto), do diretor argentino Daniel Burman, que estreou nacionalmente em agosto e ontem em Goiânia, ganham, muito além da razão necessária a sua discussão, o tratamento onírico essencial proporcionado pelo melodrama.

Isto porque nós, os humanos, somos seres em suspenso. Quanto mais ilusões buscamos na realidade, mais realista se torna o nosso ilusionismo, principalmente se o método se aplicar ao discurso diário a que chamamos brevemente de rotina. No filme de Burman, por exemplo, esse preceito é ainda mais lícito quanto transportado para uma narrativa fílmica amarrada por frustrações e desconforto diante da vida que se vive e, ainda pior, diante daquela que se gostaria de ter e não nos permitimos por diversas razões.

Ariel Perelman é o personagem central desse incômodo que, no viés do cinema argentino, é algo tão agradável quanto não deveria ser, mas tão encantador que nos dá a impressão de que não poderia ser mesmo de outro jeito. No filme, Ariel é advogado, filho do também advogado Bernardo Perelman, a quem não chama de pai. Ao contrário do que toda crônica pai-e-filho tende a propor, na história de Burman não há a admiração ao heroísmo do progenitor, mas sim o contrário: cada vez mais, cumprindo a rotina a que chama de vida, Ariel teme se transformar na figura do pai a quem não deseja ser, mas que indiscutivelmente já é semelhante.

A ilusão que, dessa forma, se supunha realidade passa, com a chegada do filho de Ariel, a se converter numa realidade paradoxalmente ilusória. Ele mesmo não é capaz de interagir normalmente com o filho, sob o pretexto de que “somos muito estranhos quando saímos do contexto”. De fato, solucionar todas as barreiras colocadas entre pai e filho - de forma inconsciente pelo primeiro e securitária pelo segundo – seria a redenção de Ariel, como estamos acostumados a ver diariamente nas novelas que seguimos. Mas é aqui que o cinema argentino se diferencia de outros tipos de trabalhos audiovisuais: na trama fluida de Burman, Ariel vai se transformar, mas não se redime.

Mensagem consistente – Contar mais sobre as tramas entre pai e filho de As Leis de Família seria um despropósito para com o filme e, especialmente, para com aqueles que queiram vê-lo. No entanto, é preciso que se diga: muito da relação estética estabelecida entre espectador e a obra de Burman decorre mais das leituras de mundo de quem o assiste do que do próprio filme em si. Porque é recorrente na filmografia do diretor – que fez o belo e também paternalmente conflituoso O Abraço Partido – não ir além daquilo que é essencial, deixando nas entrelinhas o lugar especial para quem tenta aventurar-se emocionalmente a desvendá-lo.

A acuidade visual dos planos, o minucioso trabalho de uma câmera parada que passa a se movimentar, a se arriscar mais durante a narrativa (uma trajetória semelhante à percorrida por Ariel) são pontos a serem observados e relevados nas análises a serem empreendidas em As Leis de Família. O garotinho Eloy Burman (cria do próprio diretor), que interpreta no filme o filho de Ariel, é também uma atração a parte, tão carente de pai como Ariel é do seu.

No entanto, mais do que simplesmente rir ou chorar, As Leis de Família torna-se diante de suas positividades muito mais questionador do que parece ser à primeira vista. Àqueles que irão vê-lo, ainda que vivam numa realidade ilusória (ou também no contrário), muito mais importante do que descobrir do lado de dentro da tela de cinema as respostas daquelas perguntas com as quais se iniciou este texto é transportá-las para o mundo de cá da telona, onde a vida é possível, muito mais do que a simples objetividade de algumas palavras.

Isto porque o filme é vivo e ávido de sua existência, ainda que rotineira para Ariel. Não será de assustar se houver reconhecimento ou processos catárticos por parte dos espectadores durante o desenrolar da trama. Normalmente, se rimos ou choramos, sabemos conscientemente de cada uma das razões que nos levaram às gargalhadas ou às lágrimas. Com isso, seja lá a emoção que desencadear, tem se o recado final do filme: famílias são praticamente sempre as mesmas; só mudam o endereço.

Dessa forma, a pergunta que resta é: como você lida com a sua?

Serviço
Filme: As Leis de Família (Derecho de Família) - Argentina/Itália/Espanha, 2006. 102 min. Drama. 12 anos.
Direção: Daniel Burman

Elenco: Daniel Hendler, Arturo Goetz, Julieta Díaz, Eloy Burman
Cinemas em Goiânia: Shopping Bougainville, Rua 9, Setor Marista - Lumière Bougainville 3 - 15h10, 17h10, 19h10 e 21h10 (programação até quinta, dia 25)


Fellipe Fernandes é jornalista e especialista em Cinema

Foto: Divulgação

2 comentários:

Pedro Cavalcanti disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pedro Cavalcanti disse...

Erika e Rodrigo,
Meus parabéns pelo Blogue. De fato, faltam iniciativas como essa em Goiânia. Boa Sorte pra vocês.

obs. postei uma indicação do Plural Blogue no blogue que eu e a Nayara mantemos dentro do site do nosso TCC. Entrem lá depois: www.sublide.com/blog.php

Pedro Cavalcanti