domingo, 30 de dezembro de 2007

 

Realidade e Ficção

Pesquisador Fernão Ramos faz uma análise da situação do documetário no Brasil e fala sobre o jogo entre verdade e mentira

Por Erika Lettry e Rodrigo Alves

Há pouco tempo o documentarista Eduardo Coutinho lançou Jogo de Cena, em que provoca uma reflexão sobre a representação dos entrevistados diante da câmera. Há uma década o documentário tem ganhado espaço no Brasil e a discussões sobre ele está cada vez mais rica. Em entrevista ao Plural Blog, o pesquisador Fernão Ramos (foto) analisa a atual situação do documentário no Brasil, desfaz mitos recorrentes acerca da pretensa verdade do cinema de não-ficção, e explica as diferenças entre esse gênero, as reportagens televisivas e o docudrama.

Fernão Ramos é atualmente um dos mais conceituados pesquisadores de cinema do Brasil. Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp – SP) e autor de livros como História do Cinema Brasileiro, Enciclopédia do Cinema Brasileiro e Cinema Marginal, o teórico acumula importantes prêmios em sua carreira. Entre eles o de Melhor Obra de Cinema (por Enciclopédia do Cinema Brasileiro), concedido pela Associação dos Críticos Cinematográficos do Rio de Janeiro, em 2000.

Entrevista - Fernão Ramos

O senhor disse certa vez que o documentário é, na verdade, um ensaio. Por quê?
Minha colocação foi para tentar separar um pouco documentário e verdade. Existem múltiplas concepções e visões de um mesmo fato; é muito difícil se estabelecer uma verdade absoluta sobre determinado assunto. Na medida em que as verdades variam de acordo com a interpretação e que pensamos o documentário como algo que está estabelecendo asserções sobre a realidade, a questão de que ele vai falar ou não a verdade não deve estar imediatamente ligada a seu estatuto. O estatuto do documentário está muito mais ligado a estruturas constantes (que vêm se desenrolando durante o século) do que propriamente à sua relação com a verdade. Por isso eu disse que o documentário é um pouco um ensaio. Pode-se ou não concordar com ele. Não é porque o documentário está falseando a realidade – segundo seu ponto de vista – que deixará de ser documentário.

O cineasta em geral deixa claro que o que está sendo mostrada é sua visão?
Existem diversas formas de documentário. Alguns são mais autorais, como é o caso de filmes dos cineastas Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Michael Moore. Da mesma forma existem diretores do cinema de ficção que imprimem um lado autoral muito forte. Logo, não é isso que define um documentário. O documentário que vemos na TV (vida animal, culturas de outros lugares...) não é autoral, mas nem por isso deixa de ser documentário. Pode-se então dizer que o cinema de não-ficção tem uma dimensão autoral forte, mas essa característica não é exclusiva dele. Aliás, a maior parte do campo documentário passa ao largo da tradição autoral.

O documentário assume um caráter admoestativo, ou seja, está sempre tentando passar uma lição de moral?
Não necessariamente. Tem-se a tradição do documentário clássico, que vai por esse caminho. Mas o documentário contemporâneo nem sempre é assim.

Que análise o senhor faz do documentário brasileiro que está sendo produzido atualmente?
O documentário brasileiro está num momento bom. Ele andou derrapando nos anos 90, mas agora está de vento em popa. Tem uma produção forte, como pode ser percebido no festival É Tudo Verdade. Acho que temos um trabalho de vanguarda, forte, a exemplo de Eder Santos, Kiko Goffman e Sandra Kogut, que são autores que trabalham numa linha meio limítrofe entre o documentário e a arte de vanguarda – que nada mais é que o documentário em primeira pessoa. Penso que essa é uma tendência forte dentro do documentário brasileiro atual. Tem-se ainda no cenário nacional uma busca pelo lado autoral, em que se encaixam diversos autores como Vladimir Carvalho (que vem dos anos 60 e agora se afirma), Eduardo Coutinho (que estoura nos anos 80 e se define nos anos 90), e João Moreira Salles (que começa a carreira no final dos anos 90 e agora se mostra um documentarista maduro).

Como é empregada a música dentro do cinema de não-ficção?
O documentário clássico é música. Por incrível que pareça as pessoas não fazem muito essa relação, mas a presença da música é fortíssima, ela pontua todo o documentário clássico. Existem tendências que não lidam com ela, como é o caso do cinema direto e do cinema verdade, onde sua presença é menor. Mas de uma maneira geral o documentário contemporâneo utiliza-se muito desse recurso. A função da música no documentário é a mesma do cinema de ficção: garantir o envolvimento emocional do espectador, que em geral tem dificuldade em suportar imagens em movimento sem música. O vazio incomoda.

Como diferenciar documentário, docudrama e reportagem jornalística?
O docudrama é uma narrativa ficcional que trabalha com o fato histórico. Ele o pega e coloca dentro de um fôrma, que é a narrativa clássica cinematográfica. O documentário por sua vez trabalha com entrevistas, depoimentos, arquivos, voz over. Ou seja, é uma outra tradição narrativa. Agora, por que elas são próximas? Porque trabalham com histórias. A reportagem é muito parecida com o documentário. Tem apenas diferenças de duração, de forma. Difere porque está inserida em um programa de televisão.

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural
Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

Foto: Unicamp

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

 

Sob o jugo da violência

Como diretor de Apocalypto, lançado há um ano, Mel Gibson confirma sua inquietação com a violenta natureza humana, mas não vai além

Por Rodrigo Alves

Apocalypto (2006), último filme de Mel Gibson como diretor, mostra a que veio se assistido um ano após o bafafá de seu lançamento mundial. A primeira impressão é de que se trata de uma nova versão de Rapa Nui (de 1994, dirigido por Kevin Reynolds, sobre aborígines da Ilha de Páscoa). Mas ela logo é debelada quando fica evidente a opção de Gibson em mostrar a violência nua e crua, como já fez em todos seus outros filmes.

Em meio às cenas que não poupam estômagos fracos, um jovem indígena, Pata de Jaguar, membro de um clã habitante da porção central do que viria a ser batizado de continente americano, vê seus parentes capturados por guerreiros de um povo mais forte. Os algozes são maias em busca de homens para escravizar e sacrificar aos deuses. Eles os levarão à metrópole onde a civilização enfrenta uma doença que acredita poder debelar mediante sacrifícios humanos.

As imagens que dos planos que se seguem destacam detalhes de uma recriação histórica da civilização que, segundo alguns historiadores, são bastante fidedignos. Figurino, maquiagem, montagem, iluminação e efeitos estão impecáveis sob um orçamento na casa dos US$ 40 milhões. A narrativa simplista demais irá, contudo, decepcionar.

Gibson já mostrou que é um ótimo diretor. Sabe filmar e tem talento para tirar o melhor de seus atores. Em Apocalypto mostra isso. Definitivamente está preparado para produzir imagens e seduzir o espectador. Para tanto, faz bom uso da aparelhagem digital, conseguindo levar o público, acostumado ao estilo hollywoodiano empregado no filme, a entrar no jogo a partir do momento em que as luzes se apagam. Mas Gibson o consegue tão somente por isso.

Ambição - No cinema gibsoniano há uma perceptível pretensão de inovação, nem tanto no que se refere-se à linguagem (esta, prefere manter sob o modelo estabelecido, como foi dito). Pretende mais chocar ao querer reinventar uma maneira mais realista de apresentar sua história. Leva isso tão a sério a ponto de se render a exageros que beiram o fantástico, o que acaba criando uma curiosa contradição.

E é justamente aí que peca, porque algo que poderia lhe render pontos em originalidade (buscar o fantástico) termina por esbarrar na teimosia de trazer suas ideologias limitantes para o conteúdo. Católico conservador, emissor de declarações machistas e homofóbicas, Gibson cai na armadilha de não aceitar fugas de suas convicções. Já deu prova disso em A Paixão de Cristo, seu filme anterior.

Feito com óbvia intenção de chocar, por meio de uma pretensa narração realista discutível, A Paixão... é impregnado de controversas opiniões religiosas e parece mais instrumento de panfletagem religiosa. Apocalypto – apesar de tudo, melhor que A Paixão... – também traz, em menores proporções, esta ânsia em expor suas posições controversas, ao invés de focar na riqueza da pluralidade de personagens. Querendo ser original quanto ao realismo, não sai do convencional.

Sua trama baseia-se em três momentos distintos. O primeiro apresenta a vida pacata da tribo de Pata, em 20 monótonos minutos que provocam tédio nos inquietos. O segundo mostra a chegada dos capturados à cidade maia e a reviravolta que fará o herói tentar safar-se da morte. Até aí, nada sem muita graça, a não ser a recriação histórica. O terceiro, que só então renderá bons momentos, compreende a jornada de fuga de volta à casa, onde ficaram mulher e filho.

Frustração - Gibson não tem criatividade. Está mais preocupado em dar vazão ao seu perceptível incômodo com a violenta condição humana (o que não seria ruim se não fosse seu único esforço) e esquece de concentrar esforços em um roteiro original e apurado. Acaba contando uma história trivial, que teria nesta característica (a triviliadade) seu maior trunfo caso inspirasse universalidade, isto é, causasse maior identificação ao espectador. Não causa.

Na verdade, Gibson está focado em gerar o mesmo incômodo que ele sofre. Visto sob um prisma, digamos, psicanalítico (arrisco aqui entrar em campo mais especializado) o filme escrito e dirigido por ele – portanto de sua completa autoria – revela sua maneira de encarar o homem: um ser cuja essência violenta lhe incomoda. Ao dilacerar a carne humana em frente às câmeras, Gibson parece auto-flagelar-se em um ato masoquista pela culpa de também ser humano, mas não chama à reflexão pela forma rasa com que trata o assunto.

Quando mencionei que, longe do burburinho do lançamento, da publicidade gerada pela polêmica das tais “cenas fortes” e da conseqüente falta de distanciamento adequado, Apocalypto mostra a que veio, quis dizer, então, que o filme não consegue deixar de ser mais um entre tantos, mesmo querendo não ser. É parte de um cinema de eficiência visual e sonora, que funciona somente para a catarse. Tanto para o diretor quanto para a mesma parcela do público que aclama e se farta com atos violentos de Capitão Nascimento e companhia. Não vai além.

Serviço
Filme (DVD): Apocalypto (Idem) – EUA, 2006. 139 min. Aventura.
Direção: Mel Gibson
Elenco: Rudy Youngblood, Dalia Hernandez, Jonathan Brewer, Morris Birdyellowhead, Carlos Emilios Baez
Distribuidora: Touchstone Pictures/20th Century Fox
Preço médio: R$ 24,90
Site: http://www.apocalypto.com/

Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

 

De volta ao universo beatleriano

Para fazer uma obra de arte, misture canções da banda mais famosa do mundo com a história de uma geração. O resto é encantamento!

Por Lorena Verli

São raras as vezes em que eu vou ao cinema e saio plenamente realizada com o filme que assisto. Confesso que tenho uma certa resistência com musicais e chego a duvidar da qualidade deles. Mas é um deleite ser contrariada. Afinal, as regras, quando bem quebradas, podem gerar uma obra de arte no que o termo tem de mais benjaminiano. Esse é o caso de Across the universe, um longa que mistura música e história para narrar uma época que até hoje se perpetua na mente das pessoas.

O filme acompanha a história de Jude, um britânico de Liverpool que decide viajar para os Estados Unidos para encontrar o pai que ele nunca conheceu. É lá que ele conhece Max, Sadie, Prudence, Lucy e vários outros personagens beatlerianos. Mas a mudança de país também faz com que ele encontre um Something, um amor. E é com o mais batido de todos os temas que esse longa tem a capacidade de encantar e emocionar. Nas suas entrelinhas fica claro que todo ser humano tem o direito de Let it be, de Get back e Wanna hold your hands. Que a guerra não passa de um Strawberry fields forever e que A day in a life faz toda a diferença.

Você pode até não se emocionar com todos os tapas que o filme dá na hipocrisia da sociedade, com os ideais daqueles que sonham com um futuro melhor, com a demência revigorante que cerca a tenra idade. Mas, com toda certeza, vai ficar tocado com a história de uma juventude que lutou por mudança com todas as armas que lhe foram fornecidas. Cada um a seu modo, todos buscavam a sua própria Revolution.

E, no final, depois de todas as mudanças dissipadas pelas secas notas das armas de uma guerra, ainda resta forças para um bravo soldado gritar: Hey, Jude, levante os olhos e lute. Vá a guerra, mas pelo que realmente vale a pena, o verdadeiro amor. Afinal, All you need is love e ele é Lucy in the sky with diamonds. Mas não se esqueça de fazer tudo isso, While my guitar gently weeps.
Sob a batuta da diretora Julie Taymor, a mesma de Frida, Across the Universe tem o poder de deixar em todos os fãs dos Beatles a sensação de que, por alguns minutos, a banda revive diante dos nossos olhos, repleta com os seus ideais pacíficos. Uma experiência inesquecível!

Serviço
Filme: Across the Universe – Estados Unidos, 2007. 133 min. Romance. 10 anos
Direção: Julie Taymor
Elenco: Evan Rachel Wood, Jim Sturgess, Joe Anderson, Dana Fuchs, Martin Luther, T.V. Carpio, Spencer Liff, Lisa Hogg.
Site: http://www.acrosstheuniverse.com/


Lorena Verli é jornalista e pós-graduanda em Jornalismo Literário pela ABJL

domingo, 16 de dezembro de 2007

 

Fragmentos de realidade

Em Quase Memória, livro vencedor de dois Jabuti, Carlos Heitor Cony conta histórias reais e criadas sobre a vida de seu pai

Por Erika Lettry

Tempo que ficou fragmentado em quadros, em cenas que costumam ir e vir de minha lembrança, lembrança que somada a outras nunca forma a memória do que eu fui ou do que os outros foram para mim.
Carlos Heitor Cony

As lembranças oscilam entre verdades e criações. Qual a medida do acerto? Como confiar em nossa própria memória? Carlos Heitor Cony não confia. Em seu romance (ou um apanhado de crônicas e contos?), Quase Memória, logo no prefácio ele adverte: alguns episódios aconteceram, outros foram inventados. Como diferenciar? “A espinha dorsal do livro é verdadeira”, esclareceu Cony certa vez.

Nesta quase-biografia o personagem central é Ernesto Cony Filho, seu pai, o anti-herói da vida e da literatura. Ele ressurge como uma lembrança viva, apesar de morto dez anos antes do livro ser lançado. Um pacote, inesperadamente entregue ao escritor, é o mote da história.

O mistério é colocado: como, uma década após a morte do pai, lhe chega às mãos esse pacote, amarrado com o mesmo nó que não desata fácil, a mesma letra (à tinta recente), as mesmas particularidades? Aos poucos iremos perceber que esse pacote é um mero elemento da narrativa, útil por resgatar uma memória que se supunha adormecida.

O pai morrera aos 91 anos, depois de ter sugado todo o néctar da vida. Em suas trapalhadas, desejo contínuo de viver, ganhou um admirador encabulado: o filho, Carlos Heitor Cony. Orgulho e vergonha, alegria e tristeza, decepção e aceitação foram sentimentos experimentados pelo escritor em sua relação filial. Nas etapas da vida, a transmutação da figura do pai: de herói a humano, de humano a anti-herói de romance.

Alguns episódios contados são marcantes, e Ruy Castro na contra-capa chegou a arriscar um palpite: que a história da volta de um balão, para morrer onde nasceu, entraria para a antologia da literatura brasileira. Tal é a fragmentação da obra que ela chega a ser vista como um conjunto de pequenos contos, cujo protagonista permanece o mesmo.

As histórias envolvendo balões de São João rendem os melhores momentos do livro. São nestes pontos que surgem, fortes como o presente, as imagens mais marcantes da infância do escritor, bem como sua aproximação com o pai.

A preparação minuciosa do balão que vai subir, o uso de técnicas especiais para não deixar que ele se queime no ar, a faixa violeta assinando o trabalho. Cony transmite esse olhar de criança, que parece nunca ter deixado de lado. A contradição é inevitável: de um lado o pai, na sua infantilidade, visto sob o olhar infantil do agora adulto Cony.

A figura do pai é decisiva em sua vida. Foi dele que herdou, literalmente, o ofício de jornalista. Em 1947 o pai sofreu uma leve isquemia, que o afastou temporariamente do trabalho. Foi o filho, o quase-seminarista, que o substitui no Jornal do Brasil, então o maior do Rio de Janeiro.

Esta, porém, não é a única herança paterna. A vocação para o casamento é notória: tal como Ernesto, que se casou três vezes, Cony contabiliza seis uniões. Ernesto também se materializa através do filho em outros pequenos gestos, que vamos observando ao longo da narrativa.

Pequenos gestos, que, aliás, para Ernesto sempre adquiriam feições de uma epopéia: a viagem á Itália (que sequer ultrapassou as fronteiras do Recife), a excursão para encontrar um famoso padre-milagreiro, a defesa de seus ideais (tão mutantes) com uma faca de cozinha.

Ernesto, esse homem que sempre antes de dormir dizia para si mesmo “amanhã farei grandes coisas”, aos olhos do filho-espectador tornava-se um homem monumental em sua pequenez.

O livro foi escrito em 1995, após um jejum no gênero romance que durou 23 anos para Cony. O aguardado retorno foi comemorado com dois prêmios Jabuti de Literatura, em 1996 (Melhor romance e Livro do Ano – Ficção).

Serviço
Livro
: Quase Memória
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva
Páginas: 240
Preço: R$ 37,90
Disponibilidade: fácil


Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

domingo, 9 de dezembro de 2007

 

No embalo de Paris

French Café traz canções de artistas como Serge Gainsbourg e Brigitte Bardot. Uma verdadeira viagem à França, sem sair de casa

Por Erika Lettry

Dizem que os cafés culturais são a marca de Paris. Tanto é verdade que a história da música popular francesa está intimamente ligada a estes lugares, que até hoje revelam e consagram talentos das mais variadas vertentes.

Pois entrar no clima de lá, mesmo sem colocar os pés na Cidade Luz, é mais fácil do que se pensa. Uma seleção com 13 canções de artistas novos e da velha guarda francesa pode ser encontrada no CD French Café, do selo norte-americano Putumayo.

Quem tem uma leve quedinha pela sonoridade da língua francesa e por aquela sensação de “boa vida” que as músicas da França trazem, não vai conseguir resistir quando, por acaso, cruzar com o disco em alguma loja. Pois foi exatamente o que aconteceu comigo. Em meio a um arsenal de opções expostas nas prateleiras de música, dei de cara com French Café. E quando liguei o aparelho para ouvir, só por curiosidade, acabei não resistindo à melodia Marilou Sous la Neige, de Serge Gainsbourg. Não por acaso o músico era um ícone na França (morreu em 1991), e influenciou diversas gerações no país.

O álbum traz ainda as vozes de Paris Combo, Brigitte Bardot (que, surpreendentemente, tem uma voz linda) e Mathieu Boogaerts. Impossível esquecer Barbara cantando Si la Photo est Bonne, com aquela toada suave de cantoras como Carla Bruni, que virou mania nas escolas de música francesa, ou Enzo Enzo interpretando Juste Quelqu´um de Bien. Je M´Suis Fait Tout Petit, na voz de Georges Brassens, causa ímpetos de sair dançando por aí.

Muitas canções do CD refletem influências do jazz, eletrônica e ritmos ciganos e africanos. Afinal, a França é conhecida pela abertura a sons “exóticos”. Nesta seleção em especial é interessante notar como, apesar da junção de tantos elementos externos e inovações rítmicas, é possível ainda notar a essência dos cafés franceses - mesmo sem nunca ter ido a algum. Mistérios da globalização.

Putumayo – O selo Putumayo investe em world music há mais de dez anos. Fundado pelo sociólogo americano Dan Storper, une em coletâneas músicas de diversos lugares do mundo. Quer conhecer o som da Costa do Marfim, Vietnã ou República Dominicana? Não precisa nem sair de casa. É só comprar os discos do selo.

Além das canções, que por si só valem o investimento caro (um CD não sai por menos de R$ 30), o visual também é marcante. Todas as compilações são ilustradas pela artista inglesa Nicola Heindl, que busca reproduzir os símbolos culturais dos países em questão.

Os discos, que antes precisavam ser importados, agora são distribuídos por aqui.

Serviço
CD: French Café
Artista: Vários
Gravadora: Putumayo World Music
Preço médio: R$ 34
Disponibilidade: média

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

sábado, 1 de dezembro de 2007

 

Vende-se cultura, sim senhor

Consultora especial da ONU em Economia Criativa, Ana Carla Fonseca Reis diz que é possível transformar bens culturais em lucro

Por Hebert Regis

O baixo investimento em cultura e os altos custos do setor, principalmente em novas tecnologias e mão-de-obra, desencadeiam a informalidade da área cultural no Brasil. Os últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que o setor cultura abrange 5,2% das empresas, com 4% de funcionários registrados, com média salarial de 5,1 salários mínimos mensais.

Os bens culturais são responsáveis por 4,4% da despesa familiar mensal. Isto ainda é muito pouco. É o que aponta a consultora especial da ONU em Economia Criativa, Ana Carla Fonseca Reis (foto). Para ela, países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, estão atrasados na transformação dos bens culturais em negócio.

Das iniciativas de apoio governamental, Ana Carla critica as leis de incentivo à cultura, que percebe a liberalização no uso dos recursos mas sem uma política cultural. Vice-presidente executiva do Instituto Pensarte, Ana Carla Fonseca Reis lançou recentemente seu terceiro livro, O Caleidoscópio da Cultura – Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável.

Economista e mestre em administração pela Universidade de São Paulo (USP), a especialista é curadora da conferência inglesa Creative Clusters e fundadora da empresa Garimpo de Soluções – cultura, economia e desenvolvimento. Na entrevista abaixo, ela aponta caminhos para que o Brasil transforme os seus bens culturais em negócio lucrativo.

Entrevista – Ana Carla Fonseca Reis

Quais bens culturais podem ser transformados em negócio?
A cultura pode oferecer o que pode ter maior potencial de mercado. Existem manifestações culturais que precisam ser mantidas, preservadas e incentivadas, mas que não se dirigem ao mercado. Outras possuem apelo enorme. É preciso fazer um mapeamento. O grande problema, hoje, não é a produção, e sim o canal de distribuição.

Falta conscientização para transformar os bens culturais em negócio?
É ainda uma herança colonial. Não só nossa, mas de vários países. De achar que o que vem de fora é melhor.

O Brasil está muito atrasado em relação aos outros países?
Países em desenvolvimento, de modo geral, estão atrasados. Há o costume de consumir cultura estrangeira e enxergá-la como o que existe de melhor. O que deixa a cultura local relegada. Nos últimos cinco anos, há um florescer dessa discussão. As pessoas começam a valorizar aquele pulôver da vovó, feito à mão. Esta mudança afeta todos os setores da produção cultural. O Brasil entrou numa fase de exportar o que é nosso.

Qual o caminho para que bens culturais transformem-se em bens econômicos?
As novas tecnologias têm papel importante na distribuição, em especial no mercado estrangeiro. Com elas, precisa-se rever a rigidez da lei de direitos autorais, que limita o acesso à produção cultural. Ao invés de dizer quer todo mundo só pode copiar ou fazer referência à produção cultural, com uma autorização, o próprio produtor cultural deveria decidir se quer ou não disponibilizar o produto de forma gratuita. Esta é a grande discussão do momento. Artistas já apóiam a liberação parcial, porque senão ninguém consome nada. Não dá para comprar apenas um CD de R$ 30 para ouvir apenas uma música. As novas tecnologias vieram para subverter positivamente este modelo.

Como analisa a distribuição cultural no Brasil? O apoio deve vir do governo, da sociedade civil ou do empresariado?
O governo em si é sempre uma caixinha de surpresas. Nunca se sabe quais serão as prioridades e se os projetos terão continuidade. Os programas mais bem sucedidos acabam sendo uma parceria entre os entes públicos, privados e sociedade civil. O que não impede a mobilização somente da sociedade civil. Associações, instituições financeiras, com a concessão de créditos mais voltados para o empreendedorismo do que para o mecenato, ajudariam a fortalecer o negócio cultura.

Há um abuso na liberação de recursos na área cultural, principalmente com as leis de incentivo?
Até poderia existir, se fosse um abuso mais bem pensado. Quando vemos leis de incentivo como hoje existem no Brasil, principalmente federais [Lei do Audiovisual e Lei Rouanet], percebe-se uma liberalização de recursos sem objetivos de política cultural. Não há casamento entre investimento e resultado. As comemorações de recordes contínuos de investimentos das leis de incentivo é similar ao do doente que comemora o fim da caixa de remédio, sem saber se está curado. O que isto traz para a nossa cultura?

Há outras formas de incentivo à produção cultural?
Existem várias formas de financiamento e subsídio que o Brasil pratica pouco. Há, por exemplo, subsídios diretos aos artistas. Na Irlanda, artistas de arte contemporânea não pagam imposto de renda. Por que ao invés de pensar na produção, não se investe na pessoa? Meia-entrada não deixa de ser subsídio (que hoje está deturpado). O objetivo é nobre: fazer com que quem não tem condição tenha acesso. Existem taxas, cotas de veiculação de música, muitas maneiras de incentivo. O brasileiro precisa utilizar sua propalada criatividade para encontrar soluções adequadas ao nosso contexto.

Hebert Regis é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

Foto: Divulgação