quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

 

Sob o jugo da violência

Como diretor de Apocalypto, lançado há um ano, Mel Gibson confirma sua inquietação com a violenta natureza humana, mas não vai além

Por Rodrigo Alves

Apocalypto (2006), último filme de Mel Gibson como diretor, mostra a que veio se assistido um ano após o bafafá de seu lançamento mundial. A primeira impressão é de que se trata de uma nova versão de Rapa Nui (de 1994, dirigido por Kevin Reynolds, sobre aborígines da Ilha de Páscoa). Mas ela logo é debelada quando fica evidente a opção de Gibson em mostrar a violência nua e crua, como já fez em todos seus outros filmes.

Em meio às cenas que não poupam estômagos fracos, um jovem indígena, Pata de Jaguar, membro de um clã habitante da porção central do que viria a ser batizado de continente americano, vê seus parentes capturados por guerreiros de um povo mais forte. Os algozes são maias em busca de homens para escravizar e sacrificar aos deuses. Eles os levarão à metrópole onde a civilização enfrenta uma doença que acredita poder debelar mediante sacrifícios humanos.

As imagens que dos planos que se seguem destacam detalhes de uma recriação histórica da civilização que, segundo alguns historiadores, são bastante fidedignos. Figurino, maquiagem, montagem, iluminação e efeitos estão impecáveis sob um orçamento na casa dos US$ 40 milhões. A narrativa simplista demais irá, contudo, decepcionar.

Gibson já mostrou que é um ótimo diretor. Sabe filmar e tem talento para tirar o melhor de seus atores. Em Apocalypto mostra isso. Definitivamente está preparado para produzir imagens e seduzir o espectador. Para tanto, faz bom uso da aparelhagem digital, conseguindo levar o público, acostumado ao estilo hollywoodiano empregado no filme, a entrar no jogo a partir do momento em que as luzes se apagam. Mas Gibson o consegue tão somente por isso.

Ambição - No cinema gibsoniano há uma perceptível pretensão de inovação, nem tanto no que se refere-se à linguagem (esta, prefere manter sob o modelo estabelecido, como foi dito). Pretende mais chocar ao querer reinventar uma maneira mais realista de apresentar sua história. Leva isso tão a sério a ponto de se render a exageros que beiram o fantástico, o que acaba criando uma curiosa contradição.

E é justamente aí que peca, porque algo que poderia lhe render pontos em originalidade (buscar o fantástico) termina por esbarrar na teimosia de trazer suas ideologias limitantes para o conteúdo. Católico conservador, emissor de declarações machistas e homofóbicas, Gibson cai na armadilha de não aceitar fugas de suas convicções. Já deu prova disso em A Paixão de Cristo, seu filme anterior.

Feito com óbvia intenção de chocar, por meio de uma pretensa narração realista discutível, A Paixão... é impregnado de controversas opiniões religiosas e parece mais instrumento de panfletagem religiosa. Apocalypto – apesar de tudo, melhor que A Paixão... – também traz, em menores proporções, esta ânsia em expor suas posições controversas, ao invés de focar na riqueza da pluralidade de personagens. Querendo ser original quanto ao realismo, não sai do convencional.

Sua trama baseia-se em três momentos distintos. O primeiro apresenta a vida pacata da tribo de Pata, em 20 monótonos minutos que provocam tédio nos inquietos. O segundo mostra a chegada dos capturados à cidade maia e a reviravolta que fará o herói tentar safar-se da morte. Até aí, nada sem muita graça, a não ser a recriação histórica. O terceiro, que só então renderá bons momentos, compreende a jornada de fuga de volta à casa, onde ficaram mulher e filho.

Frustração - Gibson não tem criatividade. Está mais preocupado em dar vazão ao seu perceptível incômodo com a violenta condição humana (o que não seria ruim se não fosse seu único esforço) e esquece de concentrar esforços em um roteiro original e apurado. Acaba contando uma história trivial, que teria nesta característica (a triviliadade) seu maior trunfo caso inspirasse universalidade, isto é, causasse maior identificação ao espectador. Não causa.

Na verdade, Gibson está focado em gerar o mesmo incômodo que ele sofre. Visto sob um prisma, digamos, psicanalítico (arrisco aqui entrar em campo mais especializado) o filme escrito e dirigido por ele – portanto de sua completa autoria – revela sua maneira de encarar o homem: um ser cuja essência violenta lhe incomoda. Ao dilacerar a carne humana em frente às câmeras, Gibson parece auto-flagelar-se em um ato masoquista pela culpa de também ser humano, mas não chama à reflexão pela forma rasa com que trata o assunto.

Quando mencionei que, longe do burburinho do lançamento, da publicidade gerada pela polêmica das tais “cenas fortes” e da conseqüente falta de distanciamento adequado, Apocalypto mostra a que veio, quis dizer, então, que o filme não consegue deixar de ser mais um entre tantos, mesmo querendo não ser. É parte de um cinema de eficiência visual e sonora, que funciona somente para a catarse. Tanto para o diretor quanto para a mesma parcela do público que aclama e se farta com atos violentos de Capitão Nascimento e companhia. Não vai além.

Serviço
Filme (DVD): Apocalypto (Idem) – EUA, 2006. 139 min. Aventura.
Direção: Mel Gibson
Elenco: Rudy Youngblood, Dalia Hernandez, Jonathan Brewer, Morris Birdyellowhead, Carlos Emilios Baez
Distribuidora: Touchstone Pictures/20th Century Fox
Preço médio: R$ 24,90
Site: http://www.apocalypto.com/

Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

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