domingo, 30 de dezembro de 2007

 

Realidade e Ficção

Pesquisador Fernão Ramos faz uma análise da situação do documetário no Brasil e fala sobre o jogo entre verdade e mentira

Por Erika Lettry e Rodrigo Alves

Há pouco tempo o documentarista Eduardo Coutinho lançou Jogo de Cena, em que provoca uma reflexão sobre a representação dos entrevistados diante da câmera. Há uma década o documentário tem ganhado espaço no Brasil e a discussões sobre ele está cada vez mais rica. Em entrevista ao Plural Blog, o pesquisador Fernão Ramos (foto) analisa a atual situação do documentário no Brasil, desfaz mitos recorrentes acerca da pretensa verdade do cinema de não-ficção, e explica as diferenças entre esse gênero, as reportagens televisivas e o docudrama.

Fernão Ramos é atualmente um dos mais conceituados pesquisadores de cinema do Brasil. Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp – SP) e autor de livros como História do Cinema Brasileiro, Enciclopédia do Cinema Brasileiro e Cinema Marginal, o teórico acumula importantes prêmios em sua carreira. Entre eles o de Melhor Obra de Cinema (por Enciclopédia do Cinema Brasileiro), concedido pela Associação dos Críticos Cinematográficos do Rio de Janeiro, em 2000.

Entrevista - Fernão Ramos

O senhor disse certa vez que o documentário é, na verdade, um ensaio. Por quê?
Minha colocação foi para tentar separar um pouco documentário e verdade. Existem múltiplas concepções e visões de um mesmo fato; é muito difícil se estabelecer uma verdade absoluta sobre determinado assunto. Na medida em que as verdades variam de acordo com a interpretação e que pensamos o documentário como algo que está estabelecendo asserções sobre a realidade, a questão de que ele vai falar ou não a verdade não deve estar imediatamente ligada a seu estatuto. O estatuto do documentário está muito mais ligado a estruturas constantes (que vêm se desenrolando durante o século) do que propriamente à sua relação com a verdade. Por isso eu disse que o documentário é um pouco um ensaio. Pode-se ou não concordar com ele. Não é porque o documentário está falseando a realidade – segundo seu ponto de vista – que deixará de ser documentário.

O cineasta em geral deixa claro que o que está sendo mostrada é sua visão?
Existem diversas formas de documentário. Alguns são mais autorais, como é o caso de filmes dos cineastas Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Michael Moore. Da mesma forma existem diretores do cinema de ficção que imprimem um lado autoral muito forte. Logo, não é isso que define um documentário. O documentário que vemos na TV (vida animal, culturas de outros lugares...) não é autoral, mas nem por isso deixa de ser documentário. Pode-se então dizer que o cinema de não-ficção tem uma dimensão autoral forte, mas essa característica não é exclusiva dele. Aliás, a maior parte do campo documentário passa ao largo da tradição autoral.

O documentário assume um caráter admoestativo, ou seja, está sempre tentando passar uma lição de moral?
Não necessariamente. Tem-se a tradição do documentário clássico, que vai por esse caminho. Mas o documentário contemporâneo nem sempre é assim.

Que análise o senhor faz do documentário brasileiro que está sendo produzido atualmente?
O documentário brasileiro está num momento bom. Ele andou derrapando nos anos 90, mas agora está de vento em popa. Tem uma produção forte, como pode ser percebido no festival É Tudo Verdade. Acho que temos um trabalho de vanguarda, forte, a exemplo de Eder Santos, Kiko Goffman e Sandra Kogut, que são autores que trabalham numa linha meio limítrofe entre o documentário e a arte de vanguarda – que nada mais é que o documentário em primeira pessoa. Penso que essa é uma tendência forte dentro do documentário brasileiro atual. Tem-se ainda no cenário nacional uma busca pelo lado autoral, em que se encaixam diversos autores como Vladimir Carvalho (que vem dos anos 60 e agora se afirma), Eduardo Coutinho (que estoura nos anos 80 e se define nos anos 90), e João Moreira Salles (que começa a carreira no final dos anos 90 e agora se mostra um documentarista maduro).

Como é empregada a música dentro do cinema de não-ficção?
O documentário clássico é música. Por incrível que pareça as pessoas não fazem muito essa relação, mas a presença da música é fortíssima, ela pontua todo o documentário clássico. Existem tendências que não lidam com ela, como é o caso do cinema direto e do cinema verdade, onde sua presença é menor. Mas de uma maneira geral o documentário contemporâneo utiliza-se muito desse recurso. A função da música no documentário é a mesma do cinema de ficção: garantir o envolvimento emocional do espectador, que em geral tem dificuldade em suportar imagens em movimento sem música. O vazio incomoda.

Como diferenciar documentário, docudrama e reportagem jornalística?
O docudrama é uma narrativa ficcional que trabalha com o fato histórico. Ele o pega e coloca dentro de um fôrma, que é a narrativa clássica cinematográfica. O documentário por sua vez trabalha com entrevistas, depoimentos, arquivos, voz over. Ou seja, é uma outra tradição narrativa. Agora, por que elas são próximas? Porque trabalham com histórias. A reportagem é muito parecida com o documentário. Tem apenas diferenças de duração, de forma. Difere porque está inserida em um programa de televisão.

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural
Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

Foto: Unicamp

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