domingo, 30 de dezembro de 2007

 

Realidade e Ficção

Pesquisador Fernão Ramos faz uma análise da situação do documetário no Brasil e fala sobre o jogo entre verdade e mentira

Por Erika Lettry e Rodrigo Alves

Há pouco tempo o documentarista Eduardo Coutinho lançou Jogo de Cena, em que provoca uma reflexão sobre a representação dos entrevistados diante da câmera. Há uma década o documentário tem ganhado espaço no Brasil e a discussões sobre ele está cada vez mais rica. Em entrevista ao Plural Blog, o pesquisador Fernão Ramos (foto) analisa a atual situação do documentário no Brasil, desfaz mitos recorrentes acerca da pretensa verdade do cinema de não-ficção, e explica as diferenças entre esse gênero, as reportagens televisivas e o docudrama.

Fernão Ramos é atualmente um dos mais conceituados pesquisadores de cinema do Brasil. Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp – SP) e autor de livros como História do Cinema Brasileiro, Enciclopédia do Cinema Brasileiro e Cinema Marginal, o teórico acumula importantes prêmios em sua carreira. Entre eles o de Melhor Obra de Cinema (por Enciclopédia do Cinema Brasileiro), concedido pela Associação dos Críticos Cinematográficos do Rio de Janeiro, em 2000.

Entrevista - Fernão Ramos

O senhor disse certa vez que o documentário é, na verdade, um ensaio. Por quê?
Minha colocação foi para tentar separar um pouco documentário e verdade. Existem múltiplas concepções e visões de um mesmo fato; é muito difícil se estabelecer uma verdade absoluta sobre determinado assunto. Na medida em que as verdades variam de acordo com a interpretação e que pensamos o documentário como algo que está estabelecendo asserções sobre a realidade, a questão de que ele vai falar ou não a verdade não deve estar imediatamente ligada a seu estatuto. O estatuto do documentário está muito mais ligado a estruturas constantes (que vêm se desenrolando durante o século) do que propriamente à sua relação com a verdade. Por isso eu disse que o documentário é um pouco um ensaio. Pode-se ou não concordar com ele. Não é porque o documentário está falseando a realidade – segundo seu ponto de vista – que deixará de ser documentário.

O cineasta em geral deixa claro que o que está sendo mostrada é sua visão?
Existem diversas formas de documentário. Alguns são mais autorais, como é o caso de filmes dos cineastas Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Michael Moore. Da mesma forma existem diretores do cinema de ficção que imprimem um lado autoral muito forte. Logo, não é isso que define um documentário. O documentário que vemos na TV (vida animal, culturas de outros lugares...) não é autoral, mas nem por isso deixa de ser documentário. Pode-se então dizer que o cinema de não-ficção tem uma dimensão autoral forte, mas essa característica não é exclusiva dele. Aliás, a maior parte do campo documentário passa ao largo da tradição autoral.

O documentário assume um caráter admoestativo, ou seja, está sempre tentando passar uma lição de moral?
Não necessariamente. Tem-se a tradição do documentário clássico, que vai por esse caminho. Mas o documentário contemporâneo nem sempre é assim.

Que análise o senhor faz do documentário brasileiro que está sendo produzido atualmente?
O documentário brasileiro está num momento bom. Ele andou derrapando nos anos 90, mas agora está de vento em popa. Tem uma produção forte, como pode ser percebido no festival É Tudo Verdade. Acho que temos um trabalho de vanguarda, forte, a exemplo de Eder Santos, Kiko Goffman e Sandra Kogut, que são autores que trabalham numa linha meio limítrofe entre o documentário e a arte de vanguarda – que nada mais é que o documentário em primeira pessoa. Penso que essa é uma tendência forte dentro do documentário brasileiro atual. Tem-se ainda no cenário nacional uma busca pelo lado autoral, em que se encaixam diversos autores como Vladimir Carvalho (que vem dos anos 60 e agora se afirma), Eduardo Coutinho (que estoura nos anos 80 e se define nos anos 90), e João Moreira Salles (que começa a carreira no final dos anos 90 e agora se mostra um documentarista maduro).

Como é empregada a música dentro do cinema de não-ficção?
O documentário clássico é música. Por incrível que pareça as pessoas não fazem muito essa relação, mas a presença da música é fortíssima, ela pontua todo o documentário clássico. Existem tendências que não lidam com ela, como é o caso do cinema direto e do cinema verdade, onde sua presença é menor. Mas de uma maneira geral o documentário contemporâneo utiliza-se muito desse recurso. A função da música no documentário é a mesma do cinema de ficção: garantir o envolvimento emocional do espectador, que em geral tem dificuldade em suportar imagens em movimento sem música. O vazio incomoda.

Como diferenciar documentário, docudrama e reportagem jornalística?
O docudrama é uma narrativa ficcional que trabalha com o fato histórico. Ele o pega e coloca dentro de um fôrma, que é a narrativa clássica cinematográfica. O documentário por sua vez trabalha com entrevistas, depoimentos, arquivos, voz over. Ou seja, é uma outra tradição narrativa. Agora, por que elas são próximas? Porque trabalham com histórias. A reportagem é muito parecida com o documentário. Tem apenas diferenças de duração, de forma. Difere porque está inserida em um programa de televisão.

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural
Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

Foto: Unicamp

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

 

Sob o jugo da violência

Como diretor de Apocalypto, lançado há um ano, Mel Gibson confirma sua inquietação com a violenta natureza humana, mas não vai além

Por Rodrigo Alves

Apocalypto (2006), último filme de Mel Gibson como diretor, mostra a que veio se assistido um ano após o bafafá de seu lançamento mundial. A primeira impressão é de que se trata de uma nova versão de Rapa Nui (de 1994, dirigido por Kevin Reynolds, sobre aborígines da Ilha de Páscoa). Mas ela logo é debelada quando fica evidente a opção de Gibson em mostrar a violência nua e crua, como já fez em todos seus outros filmes.

Em meio às cenas que não poupam estômagos fracos, um jovem indígena, Pata de Jaguar, membro de um clã habitante da porção central do que viria a ser batizado de continente americano, vê seus parentes capturados por guerreiros de um povo mais forte. Os algozes são maias em busca de homens para escravizar e sacrificar aos deuses. Eles os levarão à metrópole onde a civilização enfrenta uma doença que acredita poder debelar mediante sacrifícios humanos.

As imagens que dos planos que se seguem destacam detalhes de uma recriação histórica da civilização que, segundo alguns historiadores, são bastante fidedignos. Figurino, maquiagem, montagem, iluminação e efeitos estão impecáveis sob um orçamento na casa dos US$ 40 milhões. A narrativa simplista demais irá, contudo, decepcionar.

Gibson já mostrou que é um ótimo diretor. Sabe filmar e tem talento para tirar o melhor de seus atores. Em Apocalypto mostra isso. Definitivamente está preparado para produzir imagens e seduzir o espectador. Para tanto, faz bom uso da aparelhagem digital, conseguindo levar o público, acostumado ao estilo hollywoodiano empregado no filme, a entrar no jogo a partir do momento em que as luzes se apagam. Mas Gibson o consegue tão somente por isso.

Ambição - No cinema gibsoniano há uma perceptível pretensão de inovação, nem tanto no que se refere-se à linguagem (esta, prefere manter sob o modelo estabelecido, como foi dito). Pretende mais chocar ao querer reinventar uma maneira mais realista de apresentar sua história. Leva isso tão a sério a ponto de se render a exageros que beiram o fantástico, o que acaba criando uma curiosa contradição.

E é justamente aí que peca, porque algo que poderia lhe render pontos em originalidade (buscar o fantástico) termina por esbarrar na teimosia de trazer suas ideologias limitantes para o conteúdo. Católico conservador, emissor de declarações machistas e homofóbicas, Gibson cai na armadilha de não aceitar fugas de suas convicções. Já deu prova disso em A Paixão de Cristo, seu filme anterior.

Feito com óbvia intenção de chocar, por meio de uma pretensa narração realista discutível, A Paixão... é impregnado de controversas opiniões religiosas e parece mais instrumento de panfletagem religiosa. Apocalypto – apesar de tudo, melhor que A Paixão... – também traz, em menores proporções, esta ânsia em expor suas posições controversas, ao invés de focar na riqueza da pluralidade de personagens. Querendo ser original quanto ao realismo, não sai do convencional.

Sua trama baseia-se em três momentos distintos. O primeiro apresenta a vida pacata da tribo de Pata, em 20 monótonos minutos que provocam tédio nos inquietos. O segundo mostra a chegada dos capturados à cidade maia e a reviravolta que fará o herói tentar safar-se da morte. Até aí, nada sem muita graça, a não ser a recriação histórica. O terceiro, que só então renderá bons momentos, compreende a jornada de fuga de volta à casa, onde ficaram mulher e filho.

Frustração - Gibson não tem criatividade. Está mais preocupado em dar vazão ao seu perceptível incômodo com a violenta condição humana (o que não seria ruim se não fosse seu único esforço) e esquece de concentrar esforços em um roteiro original e apurado. Acaba contando uma história trivial, que teria nesta característica (a triviliadade) seu maior trunfo caso inspirasse universalidade, isto é, causasse maior identificação ao espectador. Não causa.

Na verdade, Gibson está focado em gerar o mesmo incômodo que ele sofre. Visto sob um prisma, digamos, psicanalítico (arrisco aqui entrar em campo mais especializado) o filme escrito e dirigido por ele – portanto de sua completa autoria – revela sua maneira de encarar o homem: um ser cuja essência violenta lhe incomoda. Ao dilacerar a carne humana em frente às câmeras, Gibson parece auto-flagelar-se em um ato masoquista pela culpa de também ser humano, mas não chama à reflexão pela forma rasa com que trata o assunto.

Quando mencionei que, longe do burburinho do lançamento, da publicidade gerada pela polêmica das tais “cenas fortes” e da conseqüente falta de distanciamento adequado, Apocalypto mostra a que veio, quis dizer, então, que o filme não consegue deixar de ser mais um entre tantos, mesmo querendo não ser. É parte de um cinema de eficiência visual e sonora, que funciona somente para a catarse. Tanto para o diretor quanto para a mesma parcela do público que aclama e se farta com atos violentos de Capitão Nascimento e companhia. Não vai além.

Serviço
Filme (DVD): Apocalypto (Idem) – EUA, 2006. 139 min. Aventura.
Direção: Mel Gibson
Elenco: Rudy Youngblood, Dalia Hernandez, Jonathan Brewer, Morris Birdyellowhead, Carlos Emilios Baez
Distribuidora: Touchstone Pictures/20th Century Fox
Preço médio: R$ 24,90
Site: http://www.apocalypto.com/

Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

 

De volta ao universo beatleriano

Para fazer uma obra de arte, misture canções da banda mais famosa do mundo com a história de uma geração. O resto é encantamento!

Por Lorena Verli

São raras as vezes em que eu vou ao cinema e saio plenamente realizada com o filme que assisto. Confesso que tenho uma certa resistência com musicais e chego a duvidar da qualidade deles. Mas é um deleite ser contrariada. Afinal, as regras, quando bem quebradas, podem gerar uma obra de arte no que o termo tem de mais benjaminiano. Esse é o caso de Across the universe, um longa que mistura música e história para narrar uma época que até hoje se perpetua na mente das pessoas.

O filme acompanha a história de Jude, um britânico de Liverpool que decide viajar para os Estados Unidos para encontrar o pai que ele nunca conheceu. É lá que ele conhece Max, Sadie, Prudence, Lucy e vários outros personagens beatlerianos. Mas a mudança de país também faz com que ele encontre um Something, um amor. E é com o mais batido de todos os temas que esse longa tem a capacidade de encantar e emocionar. Nas suas entrelinhas fica claro que todo ser humano tem o direito de Let it be, de Get back e Wanna hold your hands. Que a guerra não passa de um Strawberry fields forever e que A day in a life faz toda a diferença.

Você pode até não se emocionar com todos os tapas que o filme dá na hipocrisia da sociedade, com os ideais daqueles que sonham com um futuro melhor, com a demência revigorante que cerca a tenra idade. Mas, com toda certeza, vai ficar tocado com a história de uma juventude que lutou por mudança com todas as armas que lhe foram fornecidas. Cada um a seu modo, todos buscavam a sua própria Revolution.

E, no final, depois de todas as mudanças dissipadas pelas secas notas das armas de uma guerra, ainda resta forças para um bravo soldado gritar: Hey, Jude, levante os olhos e lute. Vá a guerra, mas pelo que realmente vale a pena, o verdadeiro amor. Afinal, All you need is love e ele é Lucy in the sky with diamonds. Mas não se esqueça de fazer tudo isso, While my guitar gently weeps.
Sob a batuta da diretora Julie Taymor, a mesma de Frida, Across the Universe tem o poder de deixar em todos os fãs dos Beatles a sensação de que, por alguns minutos, a banda revive diante dos nossos olhos, repleta com os seus ideais pacíficos. Uma experiência inesquecível!

Serviço
Filme: Across the Universe – Estados Unidos, 2007. 133 min. Romance. 10 anos
Direção: Julie Taymor
Elenco: Evan Rachel Wood, Jim Sturgess, Joe Anderson, Dana Fuchs, Martin Luther, T.V. Carpio, Spencer Liff, Lisa Hogg.
Site: http://www.acrosstheuniverse.com/


Lorena Verli é jornalista e pós-graduanda em Jornalismo Literário pela ABJL

domingo, 16 de dezembro de 2007

 

Fragmentos de realidade

Em Quase Memória, livro vencedor de dois Jabuti, Carlos Heitor Cony conta histórias reais e criadas sobre a vida de seu pai

Por Erika Lettry

Tempo que ficou fragmentado em quadros, em cenas que costumam ir e vir de minha lembrança, lembrança que somada a outras nunca forma a memória do que eu fui ou do que os outros foram para mim.
Carlos Heitor Cony

As lembranças oscilam entre verdades e criações. Qual a medida do acerto? Como confiar em nossa própria memória? Carlos Heitor Cony não confia. Em seu romance (ou um apanhado de crônicas e contos?), Quase Memória, logo no prefácio ele adverte: alguns episódios aconteceram, outros foram inventados. Como diferenciar? “A espinha dorsal do livro é verdadeira”, esclareceu Cony certa vez.

Nesta quase-biografia o personagem central é Ernesto Cony Filho, seu pai, o anti-herói da vida e da literatura. Ele ressurge como uma lembrança viva, apesar de morto dez anos antes do livro ser lançado. Um pacote, inesperadamente entregue ao escritor, é o mote da história.

O mistério é colocado: como, uma década após a morte do pai, lhe chega às mãos esse pacote, amarrado com o mesmo nó que não desata fácil, a mesma letra (à tinta recente), as mesmas particularidades? Aos poucos iremos perceber que esse pacote é um mero elemento da narrativa, útil por resgatar uma memória que se supunha adormecida.

O pai morrera aos 91 anos, depois de ter sugado todo o néctar da vida. Em suas trapalhadas, desejo contínuo de viver, ganhou um admirador encabulado: o filho, Carlos Heitor Cony. Orgulho e vergonha, alegria e tristeza, decepção e aceitação foram sentimentos experimentados pelo escritor em sua relação filial. Nas etapas da vida, a transmutação da figura do pai: de herói a humano, de humano a anti-herói de romance.

Alguns episódios contados são marcantes, e Ruy Castro na contra-capa chegou a arriscar um palpite: que a história da volta de um balão, para morrer onde nasceu, entraria para a antologia da literatura brasileira. Tal é a fragmentação da obra que ela chega a ser vista como um conjunto de pequenos contos, cujo protagonista permanece o mesmo.

As histórias envolvendo balões de São João rendem os melhores momentos do livro. São nestes pontos que surgem, fortes como o presente, as imagens mais marcantes da infância do escritor, bem como sua aproximação com o pai.

A preparação minuciosa do balão que vai subir, o uso de técnicas especiais para não deixar que ele se queime no ar, a faixa violeta assinando o trabalho. Cony transmite esse olhar de criança, que parece nunca ter deixado de lado. A contradição é inevitável: de um lado o pai, na sua infantilidade, visto sob o olhar infantil do agora adulto Cony.

A figura do pai é decisiva em sua vida. Foi dele que herdou, literalmente, o ofício de jornalista. Em 1947 o pai sofreu uma leve isquemia, que o afastou temporariamente do trabalho. Foi o filho, o quase-seminarista, que o substitui no Jornal do Brasil, então o maior do Rio de Janeiro.

Esta, porém, não é a única herança paterna. A vocação para o casamento é notória: tal como Ernesto, que se casou três vezes, Cony contabiliza seis uniões. Ernesto também se materializa através do filho em outros pequenos gestos, que vamos observando ao longo da narrativa.

Pequenos gestos, que, aliás, para Ernesto sempre adquiriam feições de uma epopéia: a viagem á Itália (que sequer ultrapassou as fronteiras do Recife), a excursão para encontrar um famoso padre-milagreiro, a defesa de seus ideais (tão mutantes) com uma faca de cozinha.

Ernesto, esse homem que sempre antes de dormir dizia para si mesmo “amanhã farei grandes coisas”, aos olhos do filho-espectador tornava-se um homem monumental em sua pequenez.

O livro foi escrito em 1995, após um jejum no gênero romance que durou 23 anos para Cony. O aguardado retorno foi comemorado com dois prêmios Jabuti de Literatura, em 1996 (Melhor romance e Livro do Ano – Ficção).

Serviço
Livro
: Quase Memória
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva
Páginas: 240
Preço: R$ 37,90
Disponibilidade: fácil


Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

domingo, 9 de dezembro de 2007

 

No embalo de Paris

French Café traz canções de artistas como Serge Gainsbourg e Brigitte Bardot. Uma verdadeira viagem à França, sem sair de casa

Por Erika Lettry

Dizem que os cafés culturais são a marca de Paris. Tanto é verdade que a história da música popular francesa está intimamente ligada a estes lugares, que até hoje revelam e consagram talentos das mais variadas vertentes.

Pois entrar no clima de lá, mesmo sem colocar os pés na Cidade Luz, é mais fácil do que se pensa. Uma seleção com 13 canções de artistas novos e da velha guarda francesa pode ser encontrada no CD French Café, do selo norte-americano Putumayo.

Quem tem uma leve quedinha pela sonoridade da língua francesa e por aquela sensação de “boa vida” que as músicas da França trazem, não vai conseguir resistir quando, por acaso, cruzar com o disco em alguma loja. Pois foi exatamente o que aconteceu comigo. Em meio a um arsenal de opções expostas nas prateleiras de música, dei de cara com French Café. E quando liguei o aparelho para ouvir, só por curiosidade, acabei não resistindo à melodia Marilou Sous la Neige, de Serge Gainsbourg. Não por acaso o músico era um ícone na França (morreu em 1991), e influenciou diversas gerações no país.

O álbum traz ainda as vozes de Paris Combo, Brigitte Bardot (que, surpreendentemente, tem uma voz linda) e Mathieu Boogaerts. Impossível esquecer Barbara cantando Si la Photo est Bonne, com aquela toada suave de cantoras como Carla Bruni, que virou mania nas escolas de música francesa, ou Enzo Enzo interpretando Juste Quelqu´um de Bien. Je M´Suis Fait Tout Petit, na voz de Georges Brassens, causa ímpetos de sair dançando por aí.

Muitas canções do CD refletem influências do jazz, eletrônica e ritmos ciganos e africanos. Afinal, a França é conhecida pela abertura a sons “exóticos”. Nesta seleção em especial é interessante notar como, apesar da junção de tantos elementos externos e inovações rítmicas, é possível ainda notar a essência dos cafés franceses - mesmo sem nunca ter ido a algum. Mistérios da globalização.

Putumayo – O selo Putumayo investe em world music há mais de dez anos. Fundado pelo sociólogo americano Dan Storper, une em coletâneas músicas de diversos lugares do mundo. Quer conhecer o som da Costa do Marfim, Vietnã ou República Dominicana? Não precisa nem sair de casa. É só comprar os discos do selo.

Além das canções, que por si só valem o investimento caro (um CD não sai por menos de R$ 30), o visual também é marcante. Todas as compilações são ilustradas pela artista inglesa Nicola Heindl, que busca reproduzir os símbolos culturais dos países em questão.

Os discos, que antes precisavam ser importados, agora são distribuídos por aqui.

Serviço
CD: French Café
Artista: Vários
Gravadora: Putumayo World Music
Preço médio: R$ 34
Disponibilidade: média

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

sábado, 1 de dezembro de 2007

 

Vende-se cultura, sim senhor

Consultora especial da ONU em Economia Criativa, Ana Carla Fonseca Reis diz que é possível transformar bens culturais em lucro

Por Hebert Regis

O baixo investimento em cultura e os altos custos do setor, principalmente em novas tecnologias e mão-de-obra, desencadeiam a informalidade da área cultural no Brasil. Os últimos números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que o setor cultura abrange 5,2% das empresas, com 4% de funcionários registrados, com média salarial de 5,1 salários mínimos mensais.

Os bens culturais são responsáveis por 4,4% da despesa familiar mensal. Isto ainda é muito pouco. É o que aponta a consultora especial da ONU em Economia Criativa, Ana Carla Fonseca Reis (foto). Para ela, países em desenvolvimento, incluindo o Brasil, estão atrasados na transformação dos bens culturais em negócio.

Das iniciativas de apoio governamental, Ana Carla critica as leis de incentivo à cultura, que percebe a liberalização no uso dos recursos mas sem uma política cultural. Vice-presidente executiva do Instituto Pensarte, Ana Carla Fonseca Reis lançou recentemente seu terceiro livro, O Caleidoscópio da Cultura – Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável.

Economista e mestre em administração pela Universidade de São Paulo (USP), a especialista é curadora da conferência inglesa Creative Clusters e fundadora da empresa Garimpo de Soluções – cultura, economia e desenvolvimento. Na entrevista abaixo, ela aponta caminhos para que o Brasil transforme os seus bens culturais em negócio lucrativo.

Entrevista – Ana Carla Fonseca Reis

Quais bens culturais podem ser transformados em negócio?
A cultura pode oferecer o que pode ter maior potencial de mercado. Existem manifestações culturais que precisam ser mantidas, preservadas e incentivadas, mas que não se dirigem ao mercado. Outras possuem apelo enorme. É preciso fazer um mapeamento. O grande problema, hoje, não é a produção, e sim o canal de distribuição.

Falta conscientização para transformar os bens culturais em negócio?
É ainda uma herança colonial. Não só nossa, mas de vários países. De achar que o que vem de fora é melhor.

O Brasil está muito atrasado em relação aos outros países?
Países em desenvolvimento, de modo geral, estão atrasados. Há o costume de consumir cultura estrangeira e enxergá-la como o que existe de melhor. O que deixa a cultura local relegada. Nos últimos cinco anos, há um florescer dessa discussão. As pessoas começam a valorizar aquele pulôver da vovó, feito à mão. Esta mudança afeta todos os setores da produção cultural. O Brasil entrou numa fase de exportar o que é nosso.

Qual o caminho para que bens culturais transformem-se em bens econômicos?
As novas tecnologias têm papel importante na distribuição, em especial no mercado estrangeiro. Com elas, precisa-se rever a rigidez da lei de direitos autorais, que limita o acesso à produção cultural. Ao invés de dizer quer todo mundo só pode copiar ou fazer referência à produção cultural, com uma autorização, o próprio produtor cultural deveria decidir se quer ou não disponibilizar o produto de forma gratuita. Esta é a grande discussão do momento. Artistas já apóiam a liberação parcial, porque senão ninguém consome nada. Não dá para comprar apenas um CD de R$ 30 para ouvir apenas uma música. As novas tecnologias vieram para subverter positivamente este modelo.

Como analisa a distribuição cultural no Brasil? O apoio deve vir do governo, da sociedade civil ou do empresariado?
O governo em si é sempre uma caixinha de surpresas. Nunca se sabe quais serão as prioridades e se os projetos terão continuidade. Os programas mais bem sucedidos acabam sendo uma parceria entre os entes públicos, privados e sociedade civil. O que não impede a mobilização somente da sociedade civil. Associações, instituições financeiras, com a concessão de créditos mais voltados para o empreendedorismo do que para o mecenato, ajudariam a fortalecer o negócio cultura.

Há um abuso na liberação de recursos na área cultural, principalmente com as leis de incentivo?
Até poderia existir, se fosse um abuso mais bem pensado. Quando vemos leis de incentivo como hoje existem no Brasil, principalmente federais [Lei do Audiovisual e Lei Rouanet], percebe-se uma liberalização de recursos sem objetivos de política cultural. Não há casamento entre investimento e resultado. As comemorações de recordes contínuos de investimentos das leis de incentivo é similar ao do doente que comemora o fim da caixa de remédio, sem saber se está curado. O que isto traz para a nossa cultura?

Há outras formas de incentivo à produção cultural?
Existem várias formas de financiamento e subsídio que o Brasil pratica pouco. Há, por exemplo, subsídios diretos aos artistas. Na Irlanda, artistas de arte contemporânea não pagam imposto de renda. Por que ao invés de pensar na produção, não se investe na pessoa? Meia-entrada não deixa de ser subsídio (que hoje está deturpado). O objetivo é nobre: fazer com que quem não tem condição tenha acesso. Existem taxas, cotas de veiculação de música, muitas maneiras de incentivo. O brasileiro precisa utilizar sua propalada criatividade para encontrar soluções adequadas ao nosso contexto.

Hebert Regis é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

Foto: Divulgação

domingo, 25 de novembro de 2007

 

Nós, os bailarinos

O Baile, filme de Ettore Scola sobre a dança do tempo, da vida e da morte, é restaurado e lançado em DVD

Por Fellipe Fernandes

Dizem por aí que é no salão de baile que os dançarinos mostram quem realmente são por detrás das máscaras cotidianas. Muito mais do que se revelar, quem se arrisca a entrar na feira das vaidades de uma pista de dança assume também as únicas duas possibilidades que lhe são concedidas ao final de tudo: o desnudamento da fraqueza ou o frugal crescimento da coragem. Todo o resto existente entre esses dois extremos pode ser visto de maneira muito lírica no filme O Baile, do cineasta italiano Ettore Scola, que teve a cópia restaurada e que acaba de ser lançada em DVD.

Lançado em 1983, o filme indicado ao Oscar e ganhador do Urso de Prata em Berlim traça, em pouco mais de uma hora e meia de duração, a crônica nua de um grande salão de baile construído nos anos 30 onde, muito mais do que receber pessoas para a diversão, compartilha com elas as amarguras vividas naquele ambiente desde a época de sua inauguração.

O Baile, de Scola, é para além da verdade de seus personagens, um retrato de cada uma das pessoas que constroem o tempo em que vivem. Isto porque, dividido em seis períodos temporais diferentes, o filme se estrutura basicamente no diálogo intenso entre o aspecto sensorial da música (que também se relaciona com o tempo por meio das lembranças que ela suscita em cada um dos personagens) e o teatralismo das atuações que neste filme não usam, inteligentemente, o recurso da oralidade para a expressão de suas nuances.

Assim, o espectador, diante das personalidades reveladas ao longo da narrativa (em muitas vezes elas atravessam os anos na repetição de ações que formam os estereótipos humanos), viaja não só no tempo, mas ao interior de si mesmo, tentando se descobrir tanto de forma semelhante quanto diferente dos dançarinos de um baile muito maior que transcende o salão e que pode ser também chamado de vida.

Pés-de-valsa – Em O Baile, viaja-se através dos tempos embarcado na melancolia constante que é o relacionamento humano, seja com as outras pessoas, seja consigo mesmo ou, especialmente, com o viver que cada um leva à maneira que pode. Independente da atitude que se toma enquanto se atravessa a existência mundana lutando contra fantasmas, recalques e medos, compreender a vida como um grande salão de bailes pode ser muito mais libertador do que nos parece.

Aliás, este é um dos ensinamentos por trás de O Baile, além da viagem histórica por meio da música, dos tipos humanos e suas formas de expressar. Seja em 1936, quando surge a Frente Popular dando força à classe trabalhadora; ou logo na seqüência, quando os nazistas ocupam a Europa, durante a 2ª Guerra Mundial; ou em 1968, época em que estudantes radicais se apossam dos lugares físicos e de sua própria posição na sociedade, mesmo que tenha sido por felicidade, luxúria, desprezo, entre tantos outros sentimentos e pecados capitais do mundo, o baile há sempre de terminar melancolicamente, porque caminhamos todos para a morte.

A mise-en-scène é de tanta qualidade que, passado o primeiro estranhamento da falta de diálogos falados – decorrente de nosso adestramento por filmes cada vez mais barulhentos – descobrir quem é quem, como agem as pessoas do filme, de que forma abordam as outras pessoas ou se se retraem ainda mais em seus mundos privados de acesso impossível, torna o filme ainda mais lírico do que é. Atenção especial, é claro, para a trilha sonora fantástica de Vladimir Cosma e Gilbert Bécaud, que é componente essencial para a aura da obra.

A câmera normalmente se deixa parada, de frente para o salão de baile, ressaltando o fato de que estamos sempre representando papéis ao longo da vida. Ao espectador fica ainda mais evidente a sua condição de voyeur e, por mais questionável que isso possa parecer a cada um daqueles que têm consciência disso, muito mais prazerosa que ser aquele estereótipo que se representa em nós mesmos.

O Baile, por isso, deixa de ser uma mera ocasião para se tornar um grande evento de conflito de personalidades sobre a dança do tempo, da vida e da morte. Não estranhe se, ao final do filme, você se sentir desnorteado, sem respostas, como se não soubesse para onde ir quando lhe tirarem para a pista, a fim de conceder a quem quer que seja a honra de uma contradança. É normal, pode crer. Assim, deixo aqui um conselho para facilitar sua vida e que a mim me foi muito útil: apenas vá e dance. Apenas dance.

Serviço
Filme (DVD): O Baile (Le Bal) - França/Itália, 1983. 109 min. Drama
Direção: Ettore Scola
Elenco: Etienne Guichard, Régis Bouquet, Martine Chauvin e Danielle Rochard
Distribuidora: Platina Filmes
Preço Médio: R$ 30

Fellipe Fernandes é jornalista e especialista em Cinema

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

 

A moderna relação entre fantasia e realidade

Obras no circo, cinema e literatura mostram como a mistura entre os dois mundos ainda fascina adulto e crianças

Por Eduardo Sartorato

Os gêneros realidade (drama) e fantasia sempre estiveram condenados a viver separados, seja no catálogo de espetáculos cênicos ou nas prateleiras da videolocadora. Historicamente tramas de fantasia eram reservadas para crianças e não despertavam o interesse da maioria dos adultos, que preferiam narrativas mais sérias, dramas, quanto mais ultra-realistas melhor. Ultimamente, porém, podemos verificar exemplos de integração realidade-fantasia que estão impressionando o público e atraindo cada vez mais a atenção das pessoas, principalmente adultos.

Circo - O sucesso dos espetáculos circenses do Cirque Du Soleil (na foto, o espetáculo Alegría em cartaz no Brasil)talvez possa ser explicado por esta nova tendência. O ponto positivo dos canadenses é que trazem para debaixo da lona a mistura do circo com o teatro. O tradicional picadeiro é transformado em um grande palco e este vira o ponto central de uma nova realidade. A qualidade de maquiagem e figurino dos artistas é a principal característica para que isto seja de fato concretizado. A decoração e o jogo de luzes são outros fatores que impressionam.

Além disto, todo palhaço, trapezista e, até mesmo, assistentes que sobem ao palco possuem a sua função na trama. Os assistentes de palco são caracterizados de forma invejável. No meio do espetáculo, os artistas quebram a barreira que existe entre palco e público e buscam estabelecer um diálogo com quem está assistindo. Isto não é novidade. O que impressiona é que o “novo mundo” de fantasia está tão bem montado a sua frente que quando eles ultrapassam as fronteiras e passam a se deslocar no meio de todos, criam uma interação forte entre fantasia (artistas) e realidade (público).

É a grande sensação. Para se ter idéia do tamanho deste efeito, enquanto eles estão apenas no centro, cumprindo o seu papel de espetáculo, o show não parece real. Dá a impressão que o público está assistindo a uma televisão gigantesca.

Cinema - O filme mexicano O Labirinto do Fauno (foto ao lado) também consegue traçar bem a relação entre realidade e fantasia. E surpreende. Vencedor de três Oscar (direção de arte, fotografia e maquiagem), além de outros prêmios pelo mundo, conta a história de uma um menina (Ofélia) que adora contos de fadas, mas precisa mudar para a casa de um cruel capitão no meio da trágica e real Guerra Civil Espanhola. Percorrendo os jardins da casa, ela encontra um labirinto e, com ele, todo o mundo da fantasia.

No centro existe um Fauno que lhe oferece a entrada em uma outra realidade, onde ela, em uma vida passada, foi rainha. O mundo parece ser um paraíso e a oferta de lugar ao trono é tentadora. O impressionante na obra do diretor Guillermo del Toro é a profundidade que ele apresenta a guerra e a naturalidade que o mundo fantasioso de Ofélia se encaixa no meio da trama sangrenta. Aliás, o sangue, a tortura e a violência são temas muito explorados, o que lhe tira totalmente qualquer caráter infantil.

Mesmo assim, há um mundo todo mágico, cheio de criaturas mitológicas que entram e saem da realidade, dependendo das ações de Ofélia. Isto não tira a seriedade do filme, mas o incrementa. Questões como se o Fauno é ou não honesto, e se o capitão vai ou não descobrir os traidores infiltrados em sua casa têm a mesma importância na trama.

Literatura - Esta forma de mistura entre realidade e fantasia é – no mínimo – nova em comparação com outras histórias de sucesso nos últimos anos. Em O Senhor dos Anéis, o mundo de Tolkien não possui qualquer relação com a realidade, a não ser nas várias morais e alegorias que a história representa.

Já no multimilionário sucesso de J.K. Rowling, Harry Potter, existe a clara divisão entre o mundo dos bruxos e o mundo dos trouxas (quem não é bruxo), mas este último não possui grande interferência na história. Em As Crônicas de Nárnia – O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa, adaptado ao cinema há pouco tempo, o guarda-roupa faz a grande função de dividir e manter bem afastados o mundo real e o mundo fantasioso.

Este amadurecimento nas histórias e/ou espetáculos mostra que o real e o imaginário podem muito bem conviver juntos. Além disto, apresenta um produto final muito interessante. A boa mescla entre realidade e fantasia cria algo aparentemente inatingível para estes dois gêneros.

Mais do que isto, está conquistando platéias e o respeito de críticos especializados. Prova que a fantasia pode ser muito bem tema adulto e, ao mesmo tempo, encantar o público, nas suas diferentes formas. Tanto em um espetáculo caro, longe de sua casa, quanto em um DVD, que pode ser alugado por alguns reais logo ali na esquina.

Eduardo Sartorato é jornalista

domingo, 18 de novembro de 2007

 

Digno da Pequena Pardal

Piaf – Um Hino ao Amor, de Olivier Dahan, narra de maneira poética fatos desconhecidos da vida de Edith Piaf, La Môme

Por Rodrigo Alves

Foi com a sensação de ter ido a uma apresentação ao vivo de Edith Piaf que sai do cinema ao assistir a Piaf – Um Hino ao Amor, em cartaz no circuito nacional. Diz a regra que o jornalista tem de se distanciar do objeto reportado, ser objetivo, inclusive em suas análises. Desculpem-me os puristas do jornalismo imparcial, mas esta é um daquelas resenhas escritas com a paixão de um fã.

Melhor do que esperava. O grande trunfo de Piaf é, sem discussão, Marion Cotillard (foto). Conhecida por sempre encarnar a típica francesa sensuelle, já atuou em filmes conhecidos por aqui, como Um Bom Ano (como namorada de Russel Crowe) e Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas. Agora ela entra para o panteão da grandes divas – as que realmente fazem jus ao termo, unindo beleza e talento ímpar – e fosse falante de língua inglesa, também para o todo-poderoso primeiro escalão hollywoodiano.

Se a Academia do cinema mais forte do mundo fosse justa, artisticamente falando (raras vezes é), seria indicada ao Oscar e forte candidata à estatueta. Não importa. Ela simplesmente é Edith Piaf diante de seus olhos. A postura é impecável. Auxiliada por um figurino e uma caracterização perfeita, é impressionante como transita com tanta facilidade e fidelidade entre as diferentes Ediths que surgem de acordo com a dinâmica da vida da personagem. Aliás, que personagem!

História de um sucesso - Apesar dos vários problemas da pobreza, Edith, que por isso poderia se tornar nada mais que uma indigente, sempre acreditou que era uma boa artista. A saúde frágil, para começar, não foi empecilho para que a arte a levasse ao topo. Ainda pequena foi abandonada pela mãe, uma cantora de rua fracassada, e criada pela avó em um bordel. Quando estava se acostumando foi arrastada pelo pai, um contorcionista, para segui-lo no circo. Não demorou muito, descobriu o talento musical.

Aos 15 anos, deixou o pai e seguiu os passos da mãe, cantando nas ruas em troca de moedas. Descoberta na rua, começou a ganhar notoriedade. Diante de platéias cada vez mais exigentes, sofreu para se livrar dos vícios e aprimorar a todo instante a técnica que lapida seu talento bruto. Como em uma cena que implora para subir ao palco, nada a sua frente é forte o bastante – nem mesmo a dor de perder o amor de sua vida – para separá-la das chansons.

O diretor e roteirista Olivier Dahan, criticado por alguns por abusar do vai-e-vem no tempo, opta por não linearizar sua narrativa. Ledo engano de quem o critica. Depois de Marion, esta foi sua segunda melhor escolha. Além da fotografia, som, maquiagem impecáveis, o espectador sabe que não está diante de uma monótona narrativa rigidamente cronológica. Está diante de poesia em imagens. Sabe que a cada instante será surpreendido com fatos poucos conhecidos da vida de La Môme. O desfecho é de tirar o fôlego. E ainda por cima é brindado com belas canções como La Vie en Rose e Non, Je Ne Regrette Rien.

A idéia do filme nasceu quando Dahan viu uma foto da juventude de Edith (1915-1963)
e percebeu que ninguém sabia nada sobre essa época de sua vida. Devido a inúmeros problemas, como o envolvimento com cafetões ou uma suspeita de assassinato, ela raramente falava sobre momentos vividos antes de se tornar a famosa Edith “Môme” Piaf – sobrenome artístico que, em francês, significa “pequena pardal”, se referindo aos seus 1,42 m de altura. Que escolha! Que vida! Que filme!

Serviço
Filme: Piaf – Um Hino ao Amor (La Môme) - França/Inglaterra/República Checa, 2007. 140min. Drama. 12 anos
Direção: Olivier Dahan
Elenco: Marion Cotillard, Sylvie Testud, Pascal Greggory, Gerárd Depardieu
Site:
http://www.edithpiaf.com.br/
Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

 

Em busca da honra

A história de uma mulher que luta para mudar a mentalidade de um povo

Por Lorena Verli

Mukhtar Mai era apenas uma mulher. Nasceu na pequena aldeia de Meerwala, no Paquistão, um país predominantemente muçulmano, onde as mulheres são encaradas apenas como uma propriedade masculina. Não aprendeu a ler ou escrever, nunca teve o direito de pensar ou expressar suas idéias. Divorciada, morava com seus pais e ensinava o Corão às crianças de sua aldeia. Em suma, Mai era apenas um retrato das muitas mulheres do seu país. Mas tudo isso mudou em 2002, quando ela foi condenada a um estupro coletivo por um crime que não cometeu. E é exatamente essa mudança que ela retrata na sua auto-biografia, Desonrada.

Ao contrário das milhares de mulheres muçulmanas que passam pela mesma violência, Mai não se rendeu ao desejo de se suicidar. Ela se propôs a lutar contra convenções estabelecidas há milhares de anos por uma sociedade baseada em leis discriminatórias. Seu objetivo não era obter uma vingança pessoal, mas justiça para todas as mulheres que são violadas e não têm voz ou educação para se defender. E, ao tomar essa simples atitude, Mai se transformou em um símbolo para o mundo. Um símbolo incômodo, daqueles que são proibidos de se manifestar na Organização das Nações Unidas para não constranger o presidente do seu país.

Sua luta se soma à de milhares de mulheres espalhadas pelo mundo inteiro que, no dia 25 de novembro, comemoram o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher. O resultado da via crucis de Mai, foi uma escola e a consciência de que educar meninas e ensinar-lhes seus direitos é uma tarefa fácil. Difícil é mudar, nos meninos, a mentalidade machista de que a mulher é um objeto, uma posse, e não um ser humano com direito a escolhas.

Serviço
Livro:
Desonrada
Autora: Mukhtar Mai
Editora: Best Seller
Páginas: 151
Preço: R$ 29,90

Disponibilidade: fácil

Lorena Verli é jornalista e pós-graduanda em Jornalismo Literário pela ABJL/Cesblu

domingo, 11 de novembro de 2007

 

Yoko Ono, muito prazer...

Artista inaugura exposição em São Paulo e mostra que há muito por debaixo da sombra deixada por John Lennon

Por Fellipe Fernandes

De todas as matérias sobre a exposição de Yoko Ono em São Paulo que circularam pela cidade, apenas uma pede maior atenção nos murais do belo prédio do Circuito Cultural Banco do Brasil no centro da capital paulista, onde foi aberta neste final de semana a mostra Yoko Ono: Uma Retrospectiva. Ela perguntava na manchete: “Quem foi mesmo o marido dela?”

Muitos daqueles que foram na manhã de ontem à exposição na esperança de ver Yoko e conseguir dela um autógrafo vestiam camisetas e traziam discos daquele que hoje é o maior fantasma da artista: a presença constante da lembrança de John Lennon, ex-beatle, com quem foi casada e teve um filho.

No entanto, à parte também com vários representantes da comunidade nipônica que já comemoram junto à realização da mostra o Centenário da Imigração Japonesa celebrado no próximo ano, muitas das pessoas que enfrentaram a desorganização da equipe coordenadora do evento (marcada para as 10h, a abertura das portas só ocorreu às 11h30) tinham a intenção igualitária de tentar entender o que se passa na cabeça de um dos maiores ícones do século 20.

É a isso que Yoko Ono: Uma Retrospectiva se propõe. Dispostas em três andares, as obras reunidas trazem de volta exemplares de desde o início da carreira em 1960 aos trabalhos mais atuais, como por exemplo o intitulado Amaze, uma espécie de labirinto translúcido onde se pode entrar e tentar achar o caminho do centro. São diversos tipos de composições que vão desde as gravuras, passando pela escultura e chegando às instalações, que juntas tentam mostrar os elementos básicos que foram moldando a carreira de Yoko durante todos esses anos.

Aliás, essa exposição da artista quer desesperadamente relevar a importância do questionamento feito pela matéria jornalística exposta dentre as obras: independente do passado vivido, de quem participou ou não dele, se ela foi ou não o pivô para o fim do que foi um dos maiores grupos musicais de todos os tempos, ver Yoko Ono por outro prisma – que não o de Lennon – pode ser sim muito interessante e revelador.

Provocação – Quem tem medo de Yoko Ono? Pode-se responder sem prejuízo que quase todos aqueles não querem enfrentá-la nos embates artístico-psicológico que ela mesma nos propõe. Isso porque o trabalho de Yoko – independente dos julgamentos de gosto pessoal – questiona de maneira muito clara o conceito de arte, o objeto tomado por ela, tornando as fronteiras mais fluidas ao invés de endurecê-las, como normalmente faz o pensamento acadêmico.

Sua obra, que se auto-proclama pacifista, paradoxalmente conclama o espectador à guerra ideológica ao cobrar dele uma postura mais ativa. Há nesta exposição em São Paulo a possibilidade de se tornar co-autor de algumas obras como Add Colour Painting (na qual você adiciona traços e desenhos em diversas cores) e Paiting to Hammer a Nail (que nos convida a martelar alguns pregos em nome da expressão artística).

Já que o embate socrático nessa relação estética entre o espectador e a obra de arte é o mais apreciado, o espectador pode responder com a pergunta: até que ponto posso ser co-autor de uma idéia que já me foi disposta por meio de instruções, sendo apontados ainda o material a ser usado e uma ante-noção do que precisa ser feito? Essa liberdade orientada só nos dá a sensação de alívio diante de nossa vontade inestimável de uma recusa.

No entanto, mais do que simplesmente o diálogo e a imersão no que poderia ser a arte em si, Yoko Ono não tem vergonha de expor suas referências sócio-políticas de forma a provocar o espectador e exigir dele uma reação – normalmente o pêndulo varia entre aquele que ama e o outro que odeia. Isso só mostra que, na intenção de ser vista longe da lembrança da idolatria em relação ao finado marido, ela já consegue mostrar, na paráfrase de Ari Barroso, o que é que a japoca tem.

Quem estiver em São Paulo e der uma passada pela exposição, logo vai saber que, no bom português das ruas, ela tem muito balacobaco.

Serviço:
Exposição
: Yoko Ono: Uma Retrospectiva
Data: de 10/11/2007 a 3/02/2008
Local: Circuito Cultural Banco do Brasil – Rua Álvares Penteado, 112, Centro, São Paulo – SP
Informações: (11) 3113-3651 / 3113-3652


Fellipe Fernandes é jornalista e especialista em Cinema

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

 

O derradeiro passe de mágica

Harry Potter chega ao fim com gostinho de quero mais que só grandes personagens da literatura são capazes de deixar

Por Lorena Verli

Conheço Harry Potter há cinco anos. Esse tempo pode parecer pouco mas, de fato, é metade da vida dele. Acompanho-o veementemente desde que apareceu nas telonas do cinema em seu segundo ano de Hogwarts e enfrentou um terrível basilisco para salvar sua escola. Foi o suficiente para o encanto dele cair sobre mim e fazer com que eu corresse atrás dos livros. Depois disso, não dava mais para fugir da história do bruxinho altruísta que foi maltratado pelos tios trouxas durante dez anos, antes de descobrir que não pertencia ao mundo que acreditava ser o seu. Esse Potter, era um prenúncio daquele que chega ao Brasil amanhã, com o último livro da saga, Harry Potter e as Relíquias da Morte.

O Potter de dez anos atrás era corajoso mas medíocre, não sabia lidar com seus próprios poderes e não conhecia muito da sua própria história. Talvez por isso, fosse tão encantador. Afinal, os olhos dos leitores se abriram junto com os dele. Nada mais, nada menos. E, isso se transformou no maior trunfo da série.

Com pouco mais de um ano, Harry foi o responsável pela derrota do maior bruxo das trevas de todos os tempos, Lorde Voldemort. O sacrifício de sua mãe – que se colocou diante do filho na iminência da morte dele – garantiu sua sobrevivência até a maioridade. Só que, ao completar 17 anos, ele ficaria sem qualquer proteção e livre para ser atacado pelo seu arquiinimigo. Mas J.K. Rowling não é uma autora de caminhos retos e certeiros. E, exatamente por isso, o final da série se torna, pela falta de palavra mais apropriada, surpreendente.

Em Relíquias da Morte, Potter, já adulto, é dono de sua razão, capaz de tomar atitudes, fazer escolhas e julgar os resultados com clareza. Ou seja, um exímio líder, disposto a guiar o mundo dos bruxos ao embate final contra as forças das trevas, mesmo que isso signifique encarar a própria morte. É nesse livro que todas as pontas de linha são aparadas, o destino de todos os personagens é selado, passados são revelados e Potter descobre que ninguém é o que realmente parece ser.

J.K. Rowling não mede palavras ao finalizar sua história. Muitos vão chorar, outros serão surpreendidos com o final de alguns personagens queridos. Mas ninguém poderá dizer que não foi avisado. As pistas para o grandioso final de Harry Potter e as Relíquias da Morte estão espalhadas pelos seis volumes anteriores. Só não viu quem não quis. A série pode render uma boa leitura para quem está aberto a encarar uma literatura frágil, mas fascinante. E, ao chegar no fim, despedir-se de Harry Potter é como colocar uma flor em cima de um caixão. Só que, nesse caso, o bruxinho sempre estará esperando pela sua próxima visita à estante.

Serviço
Livro
: Harry Potter e as Relíquias da Morte
Autora: J. K. Rowling
Editora: Rocco
Páginas: 600
Preço: R$ 59,50
Disponibilidade: fácil

Lorena Verli é jornalista e pós-graduanda em Jornalismo Literário pela ABJL/Cesblu

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

 

Mandou me chamar, eu vou...

Acompanhar ensaios da escola de samba Mangueira, do Rio de Janeiro, além de divertido é verdadeira aula de cultura brasileira

Por Lian Tai

Uma foto antiga denuncia que já pulei carnaval um dia na minha vida. Estamos eu e outras amiguinhas, só de saia e cordão de flores de plástico à roda do pescoço. Mas, sinceramente, não me lembro. Se não fosse a foto, diria que nunca pulei carnaval. E tampouco acompanho os desfiles na televisão. E lá fui eu, sino-goiana sem ginga, sem saber sambar e leiga no assunto, ao ensaio da Mangueira.

O táxi nos deixou já no iniciozinho do morro. Barraquinhas de souvenires, comida, bebida. E muita gente. De todas as classes sociais, todos os lugares, todas as cores. O friozinho que senti ao descer do táxi logo se dissipou com o calor humano. Pagamos nossos vinte reais por pessoa, na bilheteria. Fui informada de que, à medida que o Carnaval se aproxima, o preço sobe, chegando, em janeiro, a cinqüenta reais. Sem meia-entrada. Entregamos nossos ingressos e passamos pela catraca. Recebemos, ainda na porta, um papel com a letra do samba-enredo, intitulado “100 anos de frevo, é de perder o sapato. Recife mandou me chamar...”

Lá dentro, letreiros luminosos em verde e rosa, com a temática do ano. E em cima, o camarote com os famosos, entre eles um jogador de vôlei alto e careca (talvez vocês saibam de quem se trata) e alguns atores globais, como Maurício Mattar e Paola Oliveira. Na frente, a bateria. E no meio, a multidão. Todas aquelas teorias que eu havia estudado em aulas de cultura brasileira, sobre Carnaval, inversão de valores, transgressão, mistura, eu vejo ali. Alguém ainda vai dizer que não é bem assim e que não é todo mundo que pode pagar o ingresso e etc. e tal. Mas é. Eu vi. Tem preto, branco, vermelho, amarelo. Tem rico, tem pobre, tem classe média. As patricinhas descem do salto, os gringos caem no samba. Naquela hora o que todo mundo quer é ser do morro.

Quando começa o samba, todos se animam. Sambas antigos, de anos anteriores. E samba-enredo 2008, saído do forno. Cada qual com seu papelzinho na mão, para acompanhar a música. Pela primeira vez, a gente tenta cantar desastradamente, cada um inventando uma melodia diferente para a letra que tem na mão. Mas a música se repete uma, duas, dez vezes... e vamos aprendendo-a e deixando-a entrar na alma. Pedem-nos para abrir espaço: os passistas vão entrar. Eles entram roubando a cena e logo depois vamos atrás, formando um cordão alegre. Depois o cordão se desmancha e viramos todos uma coisa só, indefinida.

Surpresinhas durante a noite inteira. Vêm as crianças da escola, pequenininhas, exibirem-se. Garotinhos que encarnam malandros, menininhas rebolando... Depois aparecem aquelas mulatas exuberantes, com negrões charmosos. Abram espaço. É de cair o queixo. É de babar. É de causar inveja. Mas nós, reles mortais, não ficamos só olhando. A energia é tanta que ninguém fica parado. Eu, que não sambava, sambei a noite inteira. A meu jeito, é verdade. A cobertura do teto se abre, para refrescar. Ainda assim, é muito calor humano, muito suor. E haja, cerveja, água e batida para agüentar a noite toda.

No fim, o samba-enredo entra pelas veias e o coração bate ao ritmo da bateria. Os pés acompanham, doloridos: não querem parar. As vozes misturam-se, todos cantando juntos, alegres e emocionados. A noite tem seu auge quando tocam esses versos: “Mandou me chamar eu vou...Pra Recife festejar...Alegria no olhar eu vejo...É frevo, é frevo, é frevo.”

É verdade. Alegria no olhar é só o que se vê.

Lian Tai é jornalista e mestranda em Comunicação Social da UERJ

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

 

Fuga do amor

O Passado, de Babenco, trata de forma singular busca do amor e desespero de sua perda. Gael García Bernal mantém alto da narrativa

Por Hebert Regis

Em algum lugar, a qualquer momento, o passado volta à tona. As conseqüências das escolhas batem à porta de Rimini (Gael García Bernal). As fotos amareladas abandonadas, a cada nova mudança, lembram-no do dia que decidiu se separar de Sofia (Anália Couceyro, na foto ao lado com o ator). Baseado no romance homônimo do argentino Alan Pauls, O Passado – em cartaz no circuito nacional desde 26 de outubro – mostra de forma singular a busca incessante pelo amor e o desespero da sua perda.

No novo filme de Hector Babenco, as emoções extremadas diante do término do relacionamento transbordam diante de nós como uma confusão, que vai da excentricidade dos atos de Sofia à passividade de Rimini. Iniciado com uma grande amizade da juventude, o casal decide terminar o casamento depois de 12 anos, de forma aparentemente amistosa. Ele tenta esquecê-la, não atendendo aos telefonemas ou fingindo não estar em casa. Relaciona-se novamente. Primeiro com a modelo Vera (da bela Moro Anghileri) e depois com a intérprete Carmem, sua colega de profissão, com quem tem um filho.

Apesar das tentativas, a constante presença de Sofia mostra que a relação entre eles está longe de acabar, o que deixa Rimini sensivelmente perturbado. Ela é a responsável pelo fim trágico de ambos os relacionamentos. A narrativa, entrecortada com uma montagem brusca, mostra o ponto de vista do personagem de Gael García Bernal e o desespero e a angústia de uma fuga incessante, muitas vezes irracional. Quando contraditoriamente, fugir somente aproxima cada vez mais Sofia e Rimini.

Ambientado na Buenos Aires, sempre fria, escura ou chuvosa, a história parece ser bem particular. Inicialmente Babenco avaliou a possibilidade de rodar todo o filme em São Paulo, mas no final percebeu a ligação da história com um local e cultura particular. Com uma participação especial, o autor Paulo Autran, falecido em outubro, aos 85 anos, O Passado marca a presença do ator em seu último papel no cinema, ao dar vida ao professor francês Poussiére, que lê uma conferência sobre lingüística traduzida para espanhol por Rimini e Carmem.

Fragilidade - O exagero nas emoções (muito peculiar aos nossos hermanos) pode soar um pouco estranho aos brasileiros, o que não invalida a obra, principalmente ao tratar de forma singular a separação e as loucuras de uma mulher apaixonada aos olhos de um homem.

O diretor Hector Babenco explica que Rimini seria um personagem clássico nas grandes tradições dos heróis masculinos, sendo a descrição de um personagem mais frágil, longe do arquétipo do homem viril. A escolha do mexicano Gael García Bernal, mais do que marketing puro, transformou-se numa linha tênue, para que o filme não resvalasse no dramalhão, e sim em um narrativa sensível, com um personagem psicologicamente bem delineado. Não se pode dizer o mesmo de Anália Couceyro, que em determinado trecho da narrativa, deixa a sua Sofia bastante caricata.

Ao encaixar o filme em uma realidade própria, tem-se diante dos olhos uma apologia ao amor, independente de todas as suas conseqüências. O filme trata, ao mesmo tempo, a confusa briga interna entre fugir ou procurar o amor. O Passado mostra, de forma otimista, que a busca do amor é um mal necessário para se continuar vivendo plenamente. Mesmo que seja para montar aos poucos o álbum de nossas vidas e revisitá-lo mais tarde, em uma forma de preparação para a vinda de outros amores.

Serviço
Filme: O Passado (El Passado) - Argentina/Brasil, 2007. 115min. Drama. 16 anos
Direção: Hector Babenco
Elenco: Gael García Bernal, Ana Celentano, Analía Couceyro
Site:
http://www.opassado.com.br/
Cinemas em Goiânia: Severiano Ribeiro Goiânia Shopping 8 - 15h e 19h10. Lumière Bougainville 1- 14h50, 17h, 19h10 e 21h20. Todos legendados (até quinta, dia 8)


Hebert Regis é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

Foto: Ricardo Della Rosa/Reprodução

sábado, 3 de novembro de 2007

 

Sertanejo puro, country ou pop-romântico?

Quatro músicos do mundo sertanejo – Rolando Boldrin, Renato Teixeira, Marrequinho e Chico Lobo – discutem novos rumos do gênero

Por Erika Lettry

O sertanejo é um gênero com diversas ramificações ou deturpações? Até que ponto são válidas as influências estrangeiras neste estilo musical? O que separa música caipira, sertaneja e romântica? Estas perguntas são mais complexas do que parecem e abarcam, como em toda polêmica, opiniões divergentes. O Plural Blog pediu que quatro músicos ligados ao gênero (ou que já foram ligados) discutissem o assunto.

No debate constata-se que a globalização é um fato, mas ainda há resistência quanto a abrir mão de maneiras tradicionais em favor de costumes importados. Isto é especialmente explícito no universo da música sertaneja. A discussão sobre a pureza do estilo já correu mundo e criou celeumas no meio musical, sem previsão de acordo.

Enquanto alguns são veementemente contrários às influências externas, outros as enxergam como necessárias na evolução do gênero. Na primeira corrente encontra-se Rolando Boldrin (foto acima). O artista foi um dos primeiros a dedicar programas de televisão à música brasileira de inspiração regional e possui um vasto repertório de canções caipiras que reúne cateretês, toadas e modas. "Qualquer influência estrangeira na nossa música eu pessoalmente não gosto", avisa o compositor, em entrevista ao blog.

Além disso, ele critica o fato de temas rurais terem cedido espaço às músicas que falam sobre a cidade e que entoam brincadeiras de duplo sentido. "Uma mudança triste de rótulo que descaracteriza nossa música pura", lamenta. Por isso, ele prefere dividir o gênero em três outros estilos. "É erroneamente chamada de música sertaneja um produto fonográfico de alto consumo, onde aparecem duplas de cantores românticos. Na verdade, música sertaneja é música nordestina. Já a música caipira é aquela cantada em dueto com temas simples, sem apelação, coisa quase extinta", dispara Boldrin.

Ao contrário dele, o músico Renato Teixeira (foto ao lado) vê como positiva a influência externa na evolução da música sertaneja. Mas também prefere classificar esta evolução de forma diferente, decretando inclusive que a música caipira já não existe mais. "Foi o que fizeram Tonico e Tinoco há muitos anos, por exemplo. Depois disso houve uma dissidência que culminou no sertanejo, que é algo que o Almir Sater e eu fazíamos há alguns anos. Eu particularmente já abandonei isso e faço folk-brasileiro", esclarece.

Adaptação - Renato explica que houve realmente uma antropofagia, ou seja, os músicos adotaram o estilo country importado dos Estados Unidos, porém adaptaram o que vinha de lá à realidade brasileira. "Num mundo globalizado a gente não tem que se preocupar com influências. Elas fazem parte. Temos que usar o que serve para gente. O sertanejo-country é uma adaptação", diz. Ele elogia o trabalho de duplas que trabalham neste sentido, como Zezé di Camargo & Luciano e Chitãozinho & Xororó. "São músicos expressivos que vieram para ficar. Pode-se até não gostar deles, mas é ignorância negar suas qualidades. Eles não são artistas banais: vieram para ficar", afirma.

Na mesma linha de Teixeira, o compositor goiano Marrequinho não reclama da influência estrangeira na música sertaneja. Ao contrário, ele alerta que muito antes da música country, o sertanejo já havia sido influenciado por canções mexicanas e paraguaias. "No início a música sertaneja era autenticamente brasileira. Saía das roças e da mesma maneira era executada nas rádios. Depois foi chegando às cidades e algumas pessoas começaram a explorar a analogia entre as músicas mexicanas e paraguaias com a sertaneja", descreve.

A influência country, na opinião do compositor, é relativamente recente e está mais ligada às questões de montagem e instrumentalidade do que à música propriamente dita. Ele encara como positiva essa evolução ao longo dos anos. "O sertanejo era muito limitado, os ritmos eram pobres. Com as influências ele foi se desenvolvendo e só chegou aonde chegou por causa disto", avalia. Contudo, ele faz ressalvas quanto aos dias de hoje. "A música sertaneja quase que se desligou de sua origem. Virou MPB em dueto. Não digo isso como uma crítica, mas uma análise", afirma.

Aculturação - Para o músico mineiro Chico Lobo (foto ao lado) a questão principal da discussão está relacionada às definições. Ele acredita que a partir do momento em que a música sertaneja passou a sofrer influências externas, deixou de poder carregar este nome. "O que me incomoda não é a música sertaneja atual, mas o fato de muitos cantores terem se apropriado do termo. Quando o country começa a imperar e as músicas daqui deixam de falar de suas origens, entra-se num processo de aculturação", critica.

Por isso, hoje ele também se refere à música sertaneja de raiz como música caipira, embora o faça a contragosto. "A única coisa que este pop romântico que chamam de sertanejo guardou foi a tradição de se cantar em dupla", alfineta. Segundo ele, a música de raiz deve estar essencialmente ligada ao povo. E isso quer dizer que não pode evoluir? "Claro que pode. A música caipira não é peça de museu, ela é sempre dinâmica, aberta a novas leituras. Mas estas devem partir de dentro, não de influências externas", defende.
Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

Fotos: Rolando Boldrin em acervo da TV Cultura; Renato Teixeira por Marcelo Rossi; Chico Lobo em acervo pessoal

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

 

A outra tropa de elite

Rota 66, de Caco Barcelos, relata história da polícia paulistana que mata inocentes. Boa (re)leitura para quem gostou de Tropa de Elite

Por Rodrigo Alves

A leitura de uma obra sempre pode ser subsidiada por outras. Não publicamos por aqui nada sobre o filme Tropa de Elite. Primeiro porque já estava mais que divulgado – graças aos camêlos! – e depois porque, como se diz por aí, quando entramos na rede, já tínhamos perdido o timing do lançamento. Mas agora sugerimos uma obra correlata e que complementa o filme. Por isso, aí vai uma dica para quem viu o filme (ou leu o livro original): leia Rota 66 – A História da Polícia Que Mata, do jornalista Caco Barcelos.

Não se trata de uma obra ficcional como Elite da Tropa (Editora Objetiva, R$ 30), de André Batista, Rodrigo Pimentel e Luiz Eduardo Soares, inspiração do filme. Este baseia-se na vida real, mas não tem a intenção de fazer reportagem ou ser veículo de denúncia. Pelo contrário, dá vazão para a criação literária (entenda-se ficcionalização). Rota 66, não. Ele é um relato real, uma enorme reportagem, que o mercado editorial chama de livro-reportagem.

A obra de Barcelos é resultado de duas décadas de apuração sobre outra tropa de elite: as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), uma espécie de Bope paulistana, surgida pouco depois da fundação das polícias militares estaduais, por volta de 1970, por conta da ditadura militar. Ainda jovem repórter, o jornalista, hoje na redação TV Globo - São Paulo, percebeu que algo estava muito errado na filosofia da atuação da corporação de elite da PM de São Paulo. Desde pequeno, ele já fazia parte da parcela da população que temia a polícia: nasceu na periferia de Porto Alegre.

Uma motivação pessoal e uma perspicácia aguda o levaram a ir juntando, ao longo da carreira, provas sobre a história de uma polícia que mata inocentes. Espertamente, ele abre seu livro com uma narrativa que recria com minúcias (dignas de Truman Capote, de A Sangue Frio) a perseguição e a matança indiscrimida de três jovens da elite paulistana naquela década de 1970. Os assassinos faziam parte da patrulha da Rota número 66, a referida no título.

Como não se tratava de mais um caso de pobres, negros e pardos – dessa vez eram filhos de juiz e empresários – o caso ganhou notoriedade da imprensa. Foi a ponta do iceberg para qual poucos deram crédito, mas Barcelos, como bom repórter, investigou, pesquisou e esmiuçou. Ele chegou ao fim com um banco de dados impressionante, retrato de uma polícia que mata indiscriminadamente, por critérios racistas.

Diversas outras histórias de injustiça também são contadas. A obra mostra relatos de como a impunidade no Brasil ainda existe, porque aqueles que estão no comando são coniventes. E é, sobretudo, um verdadeiro ensaio sobre trivialidade com que se trata a vida humana e de como surgem “cânceres” em uma sociedade desigual e desleal.

Os atributos literários da obra não são lá essas coisas. Caco, que escreveu o livro pelos idos de 1992, não conseguiu fazer uma obra artística. Pelo contrário, pecou por não ter investido em uma narrativa mais densa e ter optado pelo vício da linguagem de relatório que nossa imprensa ainda insiste em praticar. Rota 66 não consegue, por exemplo, alcançar o êxito estilístico de Abusado (Editora Record, R$ 58). Talvez, por falta de experiência autoral de seu escritor. Mas é um show de reportagem, de boa apuração e de persistência. E nessa força documental é que o leitor encontrará pagamento por ter investido dinheiro e, principalmente, tempo no livro.

Serviço
Livro: Rota 66 – A História da Polícia Que Mata
Autor: Caco Barcelos
Editora: Record
Preço médio: R$ 37,80
Disponibilidade: fácil
Rodrigo Alves é jornalista e especialista em Jornalismo Literário

terça-feira, 30 de outubro de 2007

 

Quando não havia Photoshop...

Uma visita à exposição Marilyn Monroe – O mito, em companhia de duas mulheres

Por Carlos Eduardo Melo

A ressalva feita no subtítulo é importante, pois suscita interessantes questões que merecem ser analisadas. Diante das imagens do fotógrafo americano Bert Stern, feitas para a revista Vogue, no tradicional hotel Bel Air, de Los Angeles, em 1962, apenas seis semanas antes da morte da atriz, o olhar feminino capta, nesse caso, sutilezas e detalhes que escapam à contemplação masculina.

Marilyn não foi a melhor atriz nem de sua geração. Não foi sequer a mais bonita, nem um modelo de comportamento a ser seguido pelas jovens da época. Qual, então, a razão do fascínio que essa loura exercia e ainda exerce sobre tanta gente, 45 anos após a sua morte?

O mito Marilyn Monroe talvez seja a matriz do estereótipo da loura burra – aquele tipo de mulher gostosona, de poucos neurônios e formas fartas, a quem os canalhas seduzem com duas ou três mentiras e depois abandonam com outras tantas evasivas. Mas fosse burra e descartável de verdade, certamente seu brilho não atravessaria décadas.

Outro ponto que possivelmente justifica a construção do mito é o fato da bela ter morrido cedo. O mundo pop adora esse tipo história. Além disso, Marilyn, a despeito de sua beleza, era uma mulher triste, solitária, cujo lado interior pouco havia vindo à tona em vida, ofuscado sempre pela sua enorme exuberância plástica.

Nas fotos realizadas por Bert Stern em três dias, vê-se a musa em fase mais madura. Além disso, contam os registros feitos pelo sortudo que, durante as sessões, os dois tomaram algumas garrafas de vinho. Isso pode explicar de certo modo a atmosfera de mistério e sedução que envolve cada fotograma. A idade, o álcool, essa combinação produz alguns efeitos mágicos, que há séculos povoam o imaginário masculino.

A ótica feminina, porém, enxerga detalhes que escapam aos olhos dos homens. O olhar provocante, o sorriso sedutor não são o que mais se destacam. Nem a qualidade do trabalho fotográfico, a composição, as cores.

Chamam a atenção delas, a artificialidade das poses, a tintura do cabelo, as rugas, as sardas, os quilos a mais, a cicatriz de uma operação de visícula. Doutor Photoshop, o cirurgião plástico virtual, corrigiria facilmente esses “defeitos”. Mas aí não seria Marilyn. Poderia ser qualquer outra, a musa das novelas, a musa do samba, a musa do esporte ou qualquer uma do Big Brother, lindas, formosas, moldadas a bisturi, silicone e computação gráfica. Reinariam absolutas nas paredes de borracharias, nos quartos dos adolescentes, nos sites de mulher nua, nos programas de TV e em revistas de fofoca.

Mas por quanto tempo?

Serviço
Exposição: Marilyn Monroe – O Mito (Fotografia)
Data: Até 25 de novembro, de terça à domingo
Horário: terça a sexta, das 12h às 18h, sábado e domingo, das 12h às 19h
Preço: R$ 5
Local:
Museu de Arte Moderna (MAM) Av. Infante Dom Henrique - 85 Centro – Rio de Janeiro
Telefone: (21) 2240-4944 / 2240-4924

Carlos Eduardo Melo é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

sábado, 27 de outubro de 2007

 

A crítica sem arte

Críticos de arte se perdem diante dos rumos que a arte contemporânea vem tomando nos últimos anos

Por Erika Lettry

Mário Pedrosa foi, de acordo com as palavras do escritor Ferreira Gullar, o fundador da moderna crítica de arte no Brasil. Entusiasmou-se na década de 50 com a arte concreta – que para ele exprimia uma linguagem pictórica comum a todos os povos –, em oposição à arte modernista brasileira, voltada para os temas nacionais. Porém, quando morreu (em 1982), sua visão estética tinha mudado radicalmente. Decepcionado com os rumos da vanguarda, dizia que seu artista preferido era Matisse, porque pintava para dar prazer às pessoas. Além disso, talvez por não se enxergar mais como “filho do seu tempo”, deixou de se considerar crítico de arte.

Pedrosa não foi o único a se julgar como alguém incapaz de acompanhar as mudanças de sua época. Críticos, público e artistas (na verdadeira acepção da palavra) também sentem enorme dificuldade em apreciar a “arte” que vem se desenhando nos últimos anos. No caso de Mário Pedrosa, o que antes ele considerava como exercício experimental da liberdade acabou transformando-se em desapontamento com suas próprias expectativas em relação à vanguarda. De repente, usando como argumento a trágica história do século 20 (genocídio, regimes totalitários), os artistas começaram a imprimir uma visão negativista a seus quadros. Unir prazer à arte gerava uma espécie de culpa, ao mesmo tempo em que produzir obras duradouras parecia um contra-senso, frente à fugacidade dos novos tempos. O humanismo deixou de nortear os ideais da classe, cedendo espaço ao pessimismo e ao nonsense.

O resultado de tais mudanças na arte é que, também o papel do crítico, se alterou significativamente. Não é exagero dizer que o crítico se perdeu em meio ao discurso desses novos “artistas”. As idéias destes se consolidaram, ganharam os espaços públicos, as exposições, os museus, os jornais e revistas, encaminhando todos a uma era do absolutismo artístico. Criticar negativamente a “arte” que se produz hoje virou sinônimo de falta de comprometimento com o presente. Da mesma forma, contestar tornou-se tarefa quase exclusiva dos “artistas” que, mesmo produzindo algo distante do que se entende por arte, rejeitam aqueles que não apreciam o que produzem, reduzindo o espectador desavisado a retrógrado, quando não ignorante.

Por mais inconsistentes que sejam seus argumentos, o que se vê é uma aceitação passiva do discurso (ou da falta de) desses pretensos artistas. O filósofo Jacques Leenhardt diz que a crítica deve partir da evolução das próprias artes, da atitude dos artistas ou daquilo que se poderia chamar de “consciência de si como artista” e, por fim, da evolução do público de arte. Se a crítica foi reduzida à mera reprodução do discurso do artista, é porque não consegue se posicionar em relação àquilo que vê. Tal como a arte perdeu o sentido, a crítica se estagnou. A arte tomou rumos indesejáveis, e nisso poucos querem crer. Criou-se especialmente uma confusão acerca do que é artístico, o que é estético e o que simplesmente nada representa. O crítico mal consegue sair desse impasse, que dirá extrair da obra algo a dizer.

A princípio, cabe ao crítico o papel de reformular, por meio da linguagem, aquilo que viu. Ele deve apreciar a cor, a intensidade, a tonalidade, a linha da obra. Mas a verdade é que muitas vezes o que se vê nas exposições são obras não artísticas, e o crítico de arte tentando falar sobre elas! Uma contradição que não se explica. O que deve ser posto pelo crítico, em primeiro lugar, é se o que se fez é artístico ou não. Só daí ele pode partir para uma valoração.

Antes de partir para essa etapa, o crítico deve compreender a obra, interpretá-la. Para chegar ao ponto de analisá-la, ele passa antes por uma série de etapas essenciais, que servirão para sedimentar o juízo. Impõe-se aí o dever do crítico especializado em buscar a universalidade, a objetividade, a unidade de juízo.

No jornalismo cultural a leitura de uma obra é sempre reclamada pelo público que, na impossibilidade de conferir todas as novidades artísticas, vêem nela uma forma de adquirir conhecimentos. Além, é claro, de se informar sobre a recepção que a obra está recebendo de todos os segmentos da sociedade. Ou seja, o discurso que o crítico propaga, não raro, é absorvido pelo público, dando continuidade ao senso-comum. No jornalismo cotidiano a questão se agrava ainda mais. Muitas vezes o jornalista sequer tem tempo de conferir a obra, fiando-se em matérias pré-produzidas e deixando de lado sua função crítica.

É difícil dizer para onde caminha a crítica de arte brasileira. Mas, com a crescente simplificação da imprensa, as questões que envolvem o jornalismo cultural (entre elas estão o jabá), a falta de uma consciência do que é artístico e a aparente vitória do discurso dos pretensos artistas, pode-se imaginar um futuro cada vez mais desanimador para ela. O que não impede de sonhar com dias melhores.

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

 

Espetáculos que tocam a alma

Refletir e sensibilizar são premissas de bons espetáculos. Em Goiânia, dois destes exemplos foram apresentados nesta semana

Por Erika Lettry

O grande mérito de um espetáculo é conseguir trazer à tona reflexões ou sentimentos. Essa deveria ser a maior preocupação de quem trabalha com produtos culturais. No teatro especialmente, que lida com o público de forma tão direta, ser reflexivo e despertar questionamentos é mais do que obrigação.

Teatro deveria valer sempre como uma boa sessão de terapia. Quer coisa mais decepcionante do que sair de casa para assistir um espetáculo teatral e voltar com a mesma bagagem? Se apenas entretém, faz rir de forma gratuita, ou se a discussão que levanta não resiste à queda das cortinas, como muitas produções que vemos por aí, é sinal que os esforços de produzir não valeram a pena. Tentar compensar a pobreza de idéias com recursos mirabolantes de cena ou com piadas preconceituosas é atraso de vida. E tal escolha é feita com relativa freqüência.

Mas, às vezes por acaso, surgem narrativas que de tão inteligentes podem se dar ao luxo de deixar a cenografia rebuscada para o segundo plano. Um exemplo? A peça Divã, que foi apresentada ontem no Teatro Rio Vermelho de Goiânia pela atriz Lília Cabral (foto acima), e que já percorre o Brasil há três anos. Com elementos de palco simples, uma linguagem visual sem rococós, soluções diretas de composição de cena, o diretor enxugou a peça de todas as “gorduras”. Desta forma, não houve como escapar das discussões que o espetáculo levantou.

Talvez a identificação imediata de muita gente com o texto de Divã deva-se ao fato da protagonista ser uma mulher e, mais do que isso, alguém que não suporta a sensação de estar vivendo uma mentira. De estar vivendo a falsa felicidade, como acontece tanto com muita gente. Eu mesma me identifiquei com vários destes pontos. É inevitável.

A grande brincadeira da peça é justamente essa: quem está no divã, na realidade, somos nós. Por meio da personagem, que decide freqüentar sessões de análise apenas por curiosidade e acaba descobrindo suas verdades, também o público acaba se submetendo sem querer ao confronto consigo mesmo.

Fiquei imaginando o quanto Divã pode ter tocado questões complicadas para pessoas da platéia: fracasso no casamento, desilusões amorosas, perdas irreversíveis, medo de envelhecer, sensação de inadequação. Fiquei imaginando ainda quantas pessoas riram do ridículo da própria situação, nos momentos de comédia, e como choraram por dentro ao verem expostas suas pequenas tragédias pessoais. A única certeza é que dificilmente o público saiu do teatro carregando a mesma bagagem.

Giramundo
No extremo oposto da peça Divã, o espetáculo Pinocchio, do grupo Giramundo (foto ao lado), apresentado segunda-feira à noite no Teatro Goiânia faz uma aposta ousada na estética teatral. Efeitos de iluminação, vídeo e sonorização, frutos de uma extensa pesquisa realizada pela companhia, levam o espectador a embarcar em um mundo mágico.

Aqui, forma e conteúdo se complementam. Para quem não conhece, o Giramundo trabalha com bonecos e tem forte influência das artes plásticas em sua composição. Quase todos os apetrechos usados em cena são feitos de madeira – e o uso das marionetes vai muito além do convencional. O manuseio é tão bem executado que os bonecos das personagens de Pinocchio parecem realmente ganhar vida própria no palco. Ao final, o público foi convidado, assim como sempre ocorre nas apresentações pelo país, a conhecer o trabalho dos artistas e se surpreendeu com a forma como a iluminação do palco dá dimensões gigantescas aos bonecos de madeira.

A história do boneco de madeira teimoso e inconseqüente que se torna um menino responsável, de carne e osso, é contada de forma sombria. No palco pouca luminosidade e no enredo temas pesados, como assassinato e vilanias. Aliás, dificilmente a peça poderia ser classificada como infantil. Isso até me lembra o alerta que o escritor Rubem Alves sempre faz em seus livros. Ele costuma dizer que a literatura infantil deturpa o conteúdo das fábulas e as torna vazias de significados.

Pinocchio, inspirado no original de Carlo Collodi, não cai nesta armadilha. A história narrada pende mais para o lado trágico e para uma complexa discussão acerca da moral, do livre arbítrio e da remissão do que para uma lição boba de obediência filial com o inevitável final feliz.

Goiânia em Cena
O teatro de bonecos fez uma única apresentação na segunda-feira durante a abertura do Festival Internacional de Artes Cênicas - Goiânia em Cena. Acompanhe abaixo os outros espetáculos que constam na programação, a partir de amanhã:

Dia 26, sexta, às 21 horas
Erê – Eterno Retorno (Território Sirius Teatro)
Goiânia Ouro
Dia 27, sábado, às 21 horas
Amoratado (Harapoi – Teatro de Títeres)
Goiânia Ouro
Dia 28, Domingo, às 16h30
Amor y Circo (Harapo – Teatro de Títeres)
Praça do Sol
Dia 29, segunda, às 19 horas
A Travessia – parte I – A partida (Teatro Ritual)
Goiânia Ouro
Dia 29, segunda, às 21 horas
A Pedra do Reino (Macunaíma Grupo de Arte Teatral)
Teatro Goiânia
Dia 30, terça, às 19h30
Contas Diárias (Cia. do Ator Cômico)
Goiânia Ouro
Dia 30, terça, às 21 horas
A Pedra do Reino (Macunaíma Grupo de Arte Teatral)
Teatro Goiânia
Dia 31, quarta, às 19h30
Carne Muro (Andréia Pitta)
Goiânia Ouro
Dia 31, quarta, às 21 horas
Danças de Repertório (Corpo de Baile da Cidade)
Teatro Goiânia
Dia 1º, quinta, às 19h30
Édipo (Cia Benedita de Teatro)
Martim Cererê – Teatro Yguá
Dia 1º, quinta, às 21 horas
Somos Três, Embora Um (Ana Andréia Arte Contemporânea)
Goiânia Ouro
Dia 2, sexta, às 19h30
Balada de Um Palhaço (Grupo de Teatro Arte e Fatos)
Goiânia Ouro
Dia 2, sexta, 21 horas
Sobre Mentiras e Segredos (Os Ciclomáticos Cia de Teatro)
Teatro Goiânia
Dia 3, sábado, 21 horas
Uma História Invisível (Cia Quasar de Dança)
Teatro Goiânia

Teatro Goiânia – Av. Tocantins, esq. c/ Rua 23, Centro
Centro Municipal de Cultura Goiânia Ouro – Rua 3 esq. c/ Rua 9, Centro
Martim Cererê – Rua 94-A, Setor Sul
Ingresso: 12 reais (inteira) , por espetáculo
Informações:
http://www.goianiaemcena.com.br/

Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural
Foto Lília Cabral: Guga Melgar
Foto Giramundo: Divulgação