domingo, 16 de dezembro de 2007

 

Fragmentos de realidade

Em Quase Memória, livro vencedor de dois Jabuti, Carlos Heitor Cony conta histórias reais e criadas sobre a vida de seu pai

Por Erika Lettry

Tempo que ficou fragmentado em quadros, em cenas que costumam ir e vir de minha lembrança, lembrança que somada a outras nunca forma a memória do que eu fui ou do que os outros foram para mim.
Carlos Heitor Cony

As lembranças oscilam entre verdades e criações. Qual a medida do acerto? Como confiar em nossa própria memória? Carlos Heitor Cony não confia. Em seu romance (ou um apanhado de crônicas e contos?), Quase Memória, logo no prefácio ele adverte: alguns episódios aconteceram, outros foram inventados. Como diferenciar? “A espinha dorsal do livro é verdadeira”, esclareceu Cony certa vez.

Nesta quase-biografia o personagem central é Ernesto Cony Filho, seu pai, o anti-herói da vida e da literatura. Ele ressurge como uma lembrança viva, apesar de morto dez anos antes do livro ser lançado. Um pacote, inesperadamente entregue ao escritor, é o mote da história.

O mistério é colocado: como, uma década após a morte do pai, lhe chega às mãos esse pacote, amarrado com o mesmo nó que não desata fácil, a mesma letra (à tinta recente), as mesmas particularidades? Aos poucos iremos perceber que esse pacote é um mero elemento da narrativa, útil por resgatar uma memória que se supunha adormecida.

O pai morrera aos 91 anos, depois de ter sugado todo o néctar da vida. Em suas trapalhadas, desejo contínuo de viver, ganhou um admirador encabulado: o filho, Carlos Heitor Cony. Orgulho e vergonha, alegria e tristeza, decepção e aceitação foram sentimentos experimentados pelo escritor em sua relação filial. Nas etapas da vida, a transmutação da figura do pai: de herói a humano, de humano a anti-herói de romance.

Alguns episódios contados são marcantes, e Ruy Castro na contra-capa chegou a arriscar um palpite: que a história da volta de um balão, para morrer onde nasceu, entraria para a antologia da literatura brasileira. Tal é a fragmentação da obra que ela chega a ser vista como um conjunto de pequenos contos, cujo protagonista permanece o mesmo.

As histórias envolvendo balões de São João rendem os melhores momentos do livro. São nestes pontos que surgem, fortes como o presente, as imagens mais marcantes da infância do escritor, bem como sua aproximação com o pai.

A preparação minuciosa do balão que vai subir, o uso de técnicas especiais para não deixar que ele se queime no ar, a faixa violeta assinando o trabalho. Cony transmite esse olhar de criança, que parece nunca ter deixado de lado. A contradição é inevitável: de um lado o pai, na sua infantilidade, visto sob o olhar infantil do agora adulto Cony.

A figura do pai é decisiva em sua vida. Foi dele que herdou, literalmente, o ofício de jornalista. Em 1947 o pai sofreu uma leve isquemia, que o afastou temporariamente do trabalho. Foi o filho, o quase-seminarista, que o substitui no Jornal do Brasil, então o maior do Rio de Janeiro.

Esta, porém, não é a única herança paterna. A vocação para o casamento é notória: tal como Ernesto, que se casou três vezes, Cony contabiliza seis uniões. Ernesto também se materializa através do filho em outros pequenos gestos, que vamos observando ao longo da narrativa.

Pequenos gestos, que, aliás, para Ernesto sempre adquiriam feições de uma epopéia: a viagem á Itália (que sequer ultrapassou as fronteiras do Recife), a excursão para encontrar um famoso padre-milagreiro, a defesa de seus ideais (tão mutantes) com uma faca de cozinha.

Ernesto, esse homem que sempre antes de dormir dizia para si mesmo “amanhã farei grandes coisas”, aos olhos do filho-espectador tornava-se um homem monumental em sua pequenez.

O livro foi escrito em 1995, após um jejum no gênero romance que durou 23 anos para Cony. O aguardado retorno foi comemorado com dois prêmios Jabuti de Literatura, em 1996 (Melhor romance e Livro do Ano – Ficção).

Serviço
Livro
: Quase Memória
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva
Páginas: 240
Preço: R$ 37,90
Disponibilidade: fácil


Erika Lettry é jornalista e especialista em Jornalismo Cultural

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