quinta-feira, 31 de julho de 2008

 

Jovino e a onça

A incrível história do calunga guia na Chapada dos Veadeiros sobre a felina que come gente

Por Rodrigo Alves

Seu Jovino não é do tipo que se incomoda com longas distâncias. Especialmente se forem percorridas a pé. Ele nasceu Josino Faria da Silva, mas para não confundí-lo com a irmã Josina, os amigos alteraram o nome.

Jovino veio ao mundo há 62 anos em uma pequena comunidade calunga (descendentes de africanos em locais isolados de Goiás) .

Chamado Vão de Almas, o local é distante a cerca de 80 Km da pequena Calvalcante (GO), que por sua vez fica a 520 km de Goiânia, nordeste goiano.

Para se chegar lá é preciso andar léguas, como ainda dizem os calungas. Primeiro de carro (com tração 4x4), depois em lombo de burros. Por fim, à pé. Leva-se um dia inteiro.

Graças aos tempos, Jovino vive atualmente em Cavalcante. O conheci graças à profissão que exerce hoje, guia naquela porção da Chapada dos Veadeiros. “Eita, já levei vida muito difícil. A gente andava descalço no meio dessas matas. Criava casca no pé”, lembra ele, ex-lavrador.

Hoje, quando entra na mata é para guiar turistas. A maioria só conhece a porção da chapada situada no município de Alto Paraíso e recentemente tem descoberto também a região.

Há pouco mais de cinco anos, Jovino se empenhou em ser guia nas trilhas turísticas. Fez curso de primeiros socorros em Goiânia e passou a conhecer mais sobre a história da região. É considerado o melhor guia de Cavalcante. Se algum dia você tiver oportunidade de encontrá-lo, peça-lhe para contar histórias da onça.

Come sim – “O pessoal do Ibama diz que onça não come gente. Que não come que nada. Deixa ela ficar com fome pra ver”, desafia, em seu tom brincalhão e risonho. Caminhando à frente do grupo que faz a trilha, Jovino percebe que a turma se interessa pelo assunto. Não perde a oportunidade e nem o fôlego para contar a história.

Uma pegada deixada pela danada logo à frente nos surpreende. Por ali é a onça-pintada a dona do pedaço. A informação inspira medo em alguns andarilhos. “O que?! Passa aqui?”. Sorriso maroto, chapéu calmamente reajeitado e Jovino não perde o pique.

“Podem dizer o que quiser, mas eu não confio que ela só come bicho.” Nossa atenção é a de netos prestes a escutar a história da avó. Estávamos sem ar diante de tanta subida, mas fomos esquecendo o mal-estar.

À tarde - Contam por aí, que no fim de uma tarde uma senhora calunga saiu rumo a uma pequena plantação ali por perto. Foi apanhar açafrão, aquele que tempera a comida. “A véia começou a fazer um montinho do lado da plantação. Tinha Sol ainda”, conta Jovino. Com paciência e pausas, emenda: “Nem era noite ainda, sabe? E a onça só sai tarde da noite. Então a véia foi despreocupada.”

“Naquele dia não sei o que aconteceu”, completa. “A onça devia ter passado noite sem caça”, arrisca. Passado um tempo, o sumiço da velha começou a preocupar. “A filha deu por falta. A madrugada entrou e nada.” A suspeita era de que algo pior acontecera. “Pensaram certo. No outro dia foram procurar.”

No local onde a calunga amontoara o açafrão, havia um rastro de sangue. Nenhum outro sinal de ataque, porém. Mas não tardou para vir confirmação. “Nunca encontraram o corpo”, diz o calunga em tom sério, mas sem demonstrar tratar-se de uma conhecida. “A única coisa que conseguiram achar foi o pé da véia”, fala, ao risos.

Com açafrão – Em meio às caras perplexas, nosso guia percebe o total interesse pela história. Percebo que se satisfaz. Muitos não se dão conta de que conseguimos subir boa parte da trilha. Sem notar o desconforto físico, sem reclamar. O interesse continua. Pelo caminho encontramos mais pegadas da bichana.

O medo inicial de alguns de sermos atacados em plena luz do dia aos poucos se dilui. “Ela só sai realmente de noite”, afiança Jovino com seu marcante sorriso maroto. A esta altura nossos passos já estão mais leves e o guia, satisfeito. Sobra até espaço para uma piadinha infame.

“A onça é esperta, sabia seu Jovino?”, brinca um dos andantes. “Ah, é? Por quê?”, retruca ele, com cara de pimpão, imaginando a resposta acompanhada dos risos inevitáveis. “É que ela já comeu a velha temperada”.

Um comentário:

Lian Tai disse...

Muito bom!! Quer melhor retrato da nossa cultura do que esses relatos orais?